Um porto para Elizabeth Bishop
Embora tenha produzido grande parte de sua obra nos 16 anos em que viveu no Brasil (onde foi condecorada com medalha da Ordem de Rio Branco, em 1971) , nenhum poeta de sua geração foi mais premiado que Elizabeth Bishop nos Estados Unidos.
Ganhadora, entre muitos outros, do National Book Award, do Premio Pulitzer em 1956, do Prêmio da American Academy of Arts and Letters (para onde foi eleita em 1976) foi a primeira mulher e primeiro cidadão norte americano a receber o Premio Neustadt.
Deixou menos de cem poemas, mas o interesse por sua obra só tem crescido. Traduziu, com sensibilidade, a produção de grandes poetas como Carlos Drummond de Andrade, Cecília Meireles, Manuel Bandeira e o livro “Minha Vida de Menina”, de Helena Morley. Mestra na arte da epistolografia, teve sua vasta correspondência transformada em livro traduzido por Paulo Henriques de Britto.
Escreveu contos, ensaios e artigos para a imprensa americana, foi professora e conferencista.O contraponto desta vida literária consagrada é a história da frágil menina que nasceu em Worcester (Mass.). O pai cometeu suicídio quando ela era um bebê de 4 meses. A mãe enlouqueceu oito anos depois, tendo sido internada por toda vida num hospital psiquiátrico.
Criança tímida e doentia, sujeita a constantes crises de asma e alergia, foi criada no Canadá, pelos rigorosos avós paternos. Mais tarde, segundo suas próprias palavras, foi “resgatada” pela amada tia materna, voltando a morar nos Estados Unidos. Na adolescência, descobriu sua homossexualidade, o que a tornou ainda mais arredia e silenciosa.
Aí começaram, também, seus problemas com a dependência ao álcool. Estudou no Vassar College, onde se formou em 1934. Desfrutou a generosa herança deixada pelo pai em viagens pelo mundo. No início dos anos 50, durante uma viagem de circunavegação pela América do Sul para esquecer desgostos amorosos, decidiu desembarcar em Santos, vindo -em seguida - para o Rio de Janeiro. Aqui reencontrou Maria Carlota de Macedo Soares, a Lota (arquiteta e paisagista amadora, responsável pela obra do Aterro do Flamengo) que havia conhecido em Nova York. A alergia causada pela simples mordida em um caju impediu sua volta na data marcada. Elizabeth Bishop perdeu o navio, mas ganhou hospedagem e carinho de Lota e assim, mudou o rumo de sua vida.
Na Fazenda Alcobacinha, (em Samambaia, município de Petrópolis, distante 75 km do Rio), foi acesa a chama de um relacionamento tempestuoso, cheio de idas e vindas, decepções e desencontros que terminou tragicamente com o suicídio de Lota. Além do “colo” que encontrou na pessoa da companheira e do grupo de intelectuais que a cercava, Bishop se encantou por Ouro Preto, onde comprou e reformou uma casa, hoje um ponto de atração turística: a “Casa Mariana”.
Depois de resolver complicadas pendências judiciárias, relativas à herança que Lota lhe deixou, retornou definitivamente aos Estados Unidos, onde ensinou Poesia em Harvard e na New York University.
Faleceu vítimada pelo rompimento de um aneurisma. A história destas duas corajosas e interessantes mulheres foi contada por Carmen Lucia Oliveira no livro “Flores raras e banalíssimas" publicado em 1995 e que,traduzido para o inglês pela Rutgers, obteve resenhas muito favoráveis da crítica norte-americana.
A ARTE DE PERDER
“A arte de perder não é nenhum mistério;
Tantas coisas contêm em si o acidente
De perdê-las, que perder não é nada sério.
Perca um pouquinho a cada dia. Aceite, austero,
A chave perdida, a hora gasta bestamente.
A arte de perder não é nenhum mistério.
Depois perca mais rápido, com mais critério:
Lugares, nomes, a escala subseqüente
Da viagem não feita. Nada disso é sério.
Perdi o relógio de mamãe. Ah! E nem quero
Lembrar a perda de três casas excelentes.
A arte de perder não é nenhum mistério.
Perdi duas cidades lindas. E um império
Que era meu, dois rios, e mais um continente.
Tenho saudade deles. Mas não é nada sério.
– Mesmo perder você (a voz, o riso etéreo que eu amo) não muda nada. Pois é evidente
que a arte de perder não chega a ser mistério por muito que pareça (Escreve!) muito sério. “
CADELA ROSADA
[Rio de Janeiro]
Sol forte, céu azul. O Rio sua.
Praia apinhada de barracas. Nua,
passo apressado, você cruza a rua.
Nunca vi um cão tão nu, tão sem nada,
sem pêlo, pele tão avermelhada...
Quem a vê até troca de calçada.
Têm medo da raiva. Mas isso não
é hidrofobia — é sarna. O olhar é são
e esperto. E os seus filhotes, onde estão?
(Tetas cheias de leite.) Em que favela
você os escondeu, em que ruela,
pra viver sua vida de cadela?
Você não sabia? Deu no jornal:
pra resolver o problema social,
estão jogando os mendigos num canal.
E não são só pedintes os lançados
no rio da Guarda: idiotas, aleijados,
vagabundos, alcoólatras, drogados.
Se fazem isso com gente, os estúpidos,
com pernetas ou bípedes, sem escrúpulos,
o que não fariam com um quadrúpede?
A piada mais contada hoje em dia
é que os mendigos, em vez de comida,
andam comprando bóias salva-vidas.
Você, no estado em que está, com esses peitos,
jogada no rio, afundava feito
parafuso. Falando sério, o jeito
mesmo é vestir alguma fantasia.
Não dá pra você ficar por aí à
toa com essa cara. Você devia
pôr uma máscara qualquer. Que tal?
Até a quarta-feira, é Carnaval!
Dance um samba! Abaixo o baixo-astral!
Dizem que o Carnaval está acabando,
culpa do rádio, dos americanos...
Dizem a mesma bobagem todo ano.
O Carnaval está cada vez melhor!
Agora, um cão pelado é mesmo um horror...
Vamos, se fantasie! A-lá-lá-ô...!
1979
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