Mário Faustino por Fabrício Carpinejar

Há a tentação de apontar as estruturas clássicas do verso como sinônimo de conservadorismo e anacronismo. Uma noção vestibulanda de que estrofes e rimas pertencem a uma ourivesaria inútil. O novo residiria no poema visual, no haicai e no verso livre.

As aparências enganam. Dois dos poetas brasileiros mais populares, Mario Quintana e Vinicius de Moraes, foram hábeis sonetistas. Talvez seja um argumento pertinente para revisitar Mário Faustino, que privilegiou a renovação do antigo mais do que a inovação pela ruptura. Cultivou formas consagradas numa postura combativa, de crítico dentro da própria criação.

Natural de Teresina (PI), morreu precocemente em 1962, aos 32 anos, num desastre aéreo. Em sua trajetória curta, transformou a crítica literária com uma página semanal no Jornal do Brasil, atormentando o compadrio elogioso entre os amigos e enfrentando figurões do porte de Cecília Meireles e Carlos Drummond de Andrade. Como tradutor, sincronizou o horário brasileiro com os relógios poéticos da Europa e dos Estados Unidos ao verter Charles Baudelaire, T. S. Eliot, Ezra Pound, Arthur Rimbaud e Paul Verlaine.

Lançou um único livro de poesia em vida, O Homem e Sua Hora (1955), que a Companhia das Letras acaba de reeditar, numa versão de bolso. Embora não tenha estabelecido um jeito original de versejar, desempenhou um papel decisivo e aglutinador. Representou uma figura de apoio entre duas pontas até então inconciliáveis: a tradição e a transgressão. Permitiu, assim, o surgimento do concretismo e a subsequente valorização da recriação na tradução. Assumiu uma condição ambivalente de vanguarda na crítica e retaguarda na poesia com o lema "repetir para aprender, criar para renovar".

Cantou como um barítono, extremamente alusivo, esbanjando aliterações e jogos sonoros. "Agora o bandoleiro brada e atira/ Jorros de luz na fuga de meus dias -/ E mudo sou para cantar-te, amigo,/ O reino, a lenda, a glória desse dia". Ressuscitou uma verve classicista, fundada em Virgilio e Dante Alighieri, com um mergulho intransigente na mitologia e na metalinguagem. Também adotou o tom imperativo e severo dos profetas bíblicos, de censura e ameaça. Não ficou com medo de Deus, apesar da tônica marxista-realista dominante da época. Alternou em seus versos símbolos do cristianismo (como sarça, peixes, serpente e sudário) e transfigurou os temas mais prosaicos em conflitos subjetivos e atemporais.

Não encontraremos nele o deboche, a ironia, os trocadilhos e a distensão modernista, mas um estado elevado de transe metafórico, de limpidez lírica. Desafiando a linguagem e revelando certa adoração pela morte, Faustino exibiu a luminosidade intensa e breve de um cometa.

Fabrício Carpinejar é poeta e cronista, autor do livro
www.twitter.com/carpinejar.

ROMANCE
Para as Festas da Agonia 
Vi-te chegar, como havia 
Sonhando já que chegasses: 
Vinha teu vulto tão belo 
Em teu cavalo amarelo, 
Anjo meu, que, se me amasses, 
Em teu cavalo eu partira 
Sem saudade, pena, ou ira; 
Teu cavalo, que amarraras 
Ao tronco de minha glória 
E pastava-me a memória 
Feno de ouro, gramas raras. 
Era tão cálido o peito 
Angélico, onde meu leito 
Me deixaste então fazer, 
Que pude esquecer a cor 
Dos olhos da Vida e a dor 
Que o Sono vinha trazer. 
Tão celeste foi a Festa, 
Tão fino o Anjo, e a Besta 
Onde montei tão serena, 
Que posso, Damas, dizer-vos 
E a vós, Senhores, tão servos 
De outra Festa mais terrena 
Não morri de mala sorte, 
Morri de amor pela Morte.


O SOM DESTA PAIXÃO ESGOTA A SEIVA
O som desta paixão esgota a seiva 
Que ferve ao pé do torso; abole o gesto 
De amor que suscitava torre e gruta, 
Espada e chaga à luz do olhar blasfemo; 
O som desta paixão expulsa a cor 
Dos lábios da alegria e corta o passo 
Ao gamo da aventura que fugia; 
O som desta paixão desmente o verbo 
Mais santo e mais preciso e enxuga a lágrima 
Ao rosto suicida, anula o riso; 
O som desta paixão detém o sol, 
O som desta paixão apaga a lua. 
O som desta paixão acende o fogo 
Eterno que roubei, que te ilumina 
A face zombeteira e me arruína. 
  
O MÊS PRESENTE
Sinto que o mês presente se assassina, 
As aves atuais nascem mudas 
E o tempo na verdade tem domínio 
Sobre homens nus ao sul de luas curvas. 
Sinto que o mês presente me assassina, 
Corro despido atrás de cristo preso, |
Cavalheiro gentil que me abomina 
E atrai-me ao despudor da luz esquerda 
Ao beco de agonia onde me espreita 
A morte espacial que me ilumina. 
Sinto que o mês presente me assassina 
E o temporal ladrão rouba-me as fêmeas 
De apóstolos marujos que me arrastam 
Ao longo da corrente onde blasfemas 
Gaivotas provam peixes de milagre. 
Sinto que o mês presente me assassina, 
Há luto nas rosáceas desta aurora, 
Há sinos de ironia em cada hora 
(Na libra escorpiões pesam-me a sina) 
Há panos de imprimir a dura face 
A força do suor de sangue e chaga. 
Sinto que o mês presente me assassina, 
Os derradeiros astros nascem tortos 
E o tempo na verdade tem domínio 
Sobre o morto que enterra os próprios mortos. 
O tempo na verdade tem domínio. 
Amen, amen vos digo, tem domínio. 
E ri do que desfere verbos, dardos 
De falso eterno que retornam para 
Assassinar-nos num mês assassino.


SONETO
Necessito de um ser, um ser humano 
Que me envolva de ser 
Contra o não ser universal, arcano 
Impossível de ler
À luz da lua que ressarce o dano 
Cruel de adormecer 
A sós, à noite, ao pé do desumano 
Desejo de morrer.
Necessito de um ser, de seu abraço 
Escuro e palpitante 
Necessito de um ser dormente e lasso
Contra meu ser arfante: 
Necessito de um ser sendo ao meu lado 
Um ser profundo e aberto, um ser amado

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