Um uivo em memória de Reinaldo Arenas - Caio Fernando Abreu

























Acaba de ser lançado no Brasil um dos livros mais belos que conheço: Antes que anoiteça (Editora Record), autobiografia do cubano Reinaldo Arenas. “Belo” não seria o adjetivo exato. Pungente talvez, pois comove e rasga. Destemido, dilacerado, desesperado e sobretudo vivo de vida pulsante, sangrenta. Em chagas, tão impudicamente exposto. Mas adjetivos pouco importam. Importa o livro, a vida crua que ele revela.
Encontrei Reinaldo numa madrugada de novembro de 1992 em Saint-Nazaire, cidade francesa entre Nantes e Brest, exatamente onde o rio Loire chega ao mar, fronteira sul da Bretanha. Aparentemente anódina, sinistrée durante a Segunda Guerra (numa noite, restaram cinco mil dos 8o mil habitantes), depois reconstruída pelos americanos, Saint-Nazaire é, contudo, mágica a ponto de ter um dólmen druídico na praça central. Num décimo segundo andar, a prefeitura socialista e a editora Arcane 17 mantêm a Maison des Écrivains Étrangers, que oferece bolsas a escritores do mundo todo durante dois ou três meses, para que deixem um livro à memória da cidade. Por lá passaram o argentino Ricardo Piglia, o búlgaro Victor Paskov, o espanhol Luis Goytisolo e pelo menos mais uns 20 checos, escandinavos, chineses. Nesse tempo de que falo, por partes de minha tradutora Claire Cayron, era eu o hóspede.
Foi numa noite de tempestade, loucas gaivotas batiam-se contra as vidraças do terraço. Insone fiquei lendo Méditations de Saint -Nazaire, de Arenas, que só vagamente conhecia (Celestino antes dei alba, El mundo alucinante). Impressionado com o texto, decorei suas últimas palavras: “Aún nossie ete El sitio dondeyo puedavivir. Talvez para um desterrado — como la palabra lo indica — no hayasitio en la Tíerra. Sólo quiera pedirle a ete cielo resplandecientey a este mar, que poruno días aúnpodré contemplar, que acojan mi terror”. Repeti feito oração, e dormi. Acordei ouvindo o ruído da máquina de escrever do escritório. Fui até o corredor, espiei. Em frente à janela, um homem moreno contemplava a tempestade enquanto escrevia. Parecia chorar. Estremeci, ele desapareceu. Tô pirando, pensei. E voltei a dormir.
Pela manhã contei a história a Christian Bouthemy, poeta e editor da Arcane 17. Descrevi o homem. Parece Reinaldo Arenas, ele lembrou, que ficara por lá apenas uma semana da temporada de dois meses. Estava com aids, tinha medo de se jogar pela janela. Preferiu voltar a Nova York e suicidar-se com uma overdose de barbitúricos e álcool, depois de concluir sua autobiografia, este Antes que anoiteça. Consegui o livro em francês e em Paris, num quartinho alugado com Dominique Bach, produtora da cantora cabo-verdiana Cesária Évora, durante um fevereiro gelado, no coração da barra pesada de Château d’Eau, mastiguei suas últimas palavras como se fossem cacos de vidro. Não suportava ler, nem conseguia parar. Jamais sofri tanto com um livro — nem mesmo Fome, de Knut Hamsum, ou A morte de Ivan Ilitch, de Tolstói.
Leiam também vocês se não têm medo da dor e da verdade. Censurado, perseguido e preso em Cuba por homossexualismo, Arenas fugiu para Miami, primeira estação do seu calvário de solidão e exílio, dedicando-se a desmascarar figurões tipo García Márquez, Severo Sarduy, Eduardo Galeano, Julio Cortázar e outros asseclas de Fidel Castro, que odiava. Livra a cara de pouco — Lezama Lima e Virgilio Piuiera, malditos (e grandes) como ele. Transbordava amor: à vida, aos rapazes, à literatura.
Voltando ao Brasil, tentei traduzi-lo. Ninguém quis. Muito deprimente, diziam, pouco comercial. Mas como o Deus das Laikas (e Arenas foi a maior de todas) tarda mas não falha, saiu agora. Leiam. Pelo bravo homem que ele foi, e também para aprender a valorizar o que se tem, mas não se preza. Depois uivem para o infinito em memória desse cubano lindo, desventurado, heróico.
Requiem scat in pace, hermoso compafíero.

O Estado de S Paulo, 27/11/1994

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