O destino libertário de Jean Genet
O autor de Querelle e Nossa Senhora das Flores encontrou no filósofo Jean-Paul Sartre, autor de Saint Genet – Ator e mártir, o intérprete ideal de sua transubstanciação da dor e da perversão em uma forma de exercício e escolha da liberdade.
Carlos Eduardo Ortolan Miranda
Divina: – De tanto repetir para mim que não estou viva, aceito o fato das pessoas não mais me considerarem.
Jean Genet
O pária escreve uma poesia corrosiva, de acidez clássica, de beleza terrível. O pederasta, o ladrão, o mendigo, o enjeitado, o encarcerado prestes à condenação perpétua (como se esta já não lhe fizesse parte da alma) produz literatura. Nossa Senhora das Flores, Querelle, Pompas fúnebres, uma literatura que é física, mineral, poesia-objeto, poesia-corpo que só se refere ao concreto e que, por isso mesmo, nos alcança. Que é recusa e desprezo. Pecado mortal, decisão pela recusa e desejo de desespero. Não. Mais grave. Esperança no Mal. Santificação do estigma que lhe foi gravado com o ferro em brasa da acusação das Pessoas Honestas. Que nos atinge como um soco. Que alimenta nossos fantasmas mais íntimos. Literatura abismal, palavra que não liberta, Evangelho dialeticamente transmutado ou que, por outra via, descortina um salto de liberdade possível, necessariamente possível, que é inaceitável em sua sedução transgressora. A demonstração axiomática da liberdade humana é uma infâmia inconcebível. Exibir a essência ineludível da liberdade é o pecado original de Genet. E isso através de uma ordem rigorosa que é o lado oculto da ordem, é um cartesianismo às avessas, uma moral religiosa com sinal trocado. No jardim dos caminhos que se bifurcam, Genet escolhe a face escura da lua, os raios de um sol negro.
O condenado que recusa a história e assume o mito exibe impudente suas chagas, o vagabundo oficiante transubstancia a dor e a perversão. Pecado tão mais horrendo, pois sempre é inversão do dogma: sacraliza o ímpio e goza através do que é recusa social. Refina até o limite, com um racionalismo irretorquível, a face malévola refletida no espelho da reta via burguesa. Não é um simples sofista a exercitar habilidades discursivas para uma platéia de doutos, pois Genet não tem pares. A solidão fundamental é um estigma em sua própria carne. Jean Genet é um criador de palavras eficazes, no sentido mais grave do termo. Assassinos oficiam liturgias do crime, o carrasco excita o escritor onanista, o lirismo se produz por intermédio da realização poética do reverso da consciência burguesa, mas, e de novo, é a reafirmação do inescrutável que vem à luz, e que nela se incrusta. O verbo se faz carne, mas herética. A palavra hábil é litania, e torna a corrupção o canto sacramental na catedral dos marginais de Genet. Não gostaríamos de ouvir essa harmonia da perversidade que não é caos, pois o caos é ininteligível. O ladrão nos atira nas faces tranqüilas que a liberdade é inescapável. “Liberdade é maldição possível, homens honestos”, diz-nos Genet: o silogismo assustador é que a opção pelo crime, pelo que há de obscuro e soturno em nós, realiza-se ao provarmos o fruto acerbo por meio do qual essa literatura expõe a neutralidade essencial do conceito de liberdade que agora nos assedia e se clarifica, ofertado pela voz agônica do excluído: está a nos espreitar sob as gravatas e os horários, repousa na paz dos lares, oculta-se sob a face da presumida inocência.
Jean Genet é um mistério. Jean Genet nos apavora.
É justamente o mistério representado pela contradição aparente (no limite, que poderia ser associada a mero preconceito ideológico) entre a grandeza da obra e o destino marginal de seu criador que desperta o interesse de Jean-Paul Sartre. Em seu grandioso ensaio de crítica da obra de Genet, que originalmente surgiu como introdução às obras completas daquele pela Editora Gallimard, Saint Genet – Ator e mártir (editora Vozes), o filósofo francês discorre, por mais de quinhentas páginas, sobre o mistério Genet. Num livro em que se entrecruzam de forma habilíssima e sempre percuciente os discursos teóricos da psicanálise, do marxismo e da fenomenologia existencialista, Sartre procurará interpretar essa literatura vigorosa e complexa; descobrir a escolha que um escritor faz de si mesmo, como escreve Sartre, é inegavelmente uma leitura existencial da obra de Genet, compreendida à luz do conceito sartreano de Liberdade.
Iniciei esse ensaio, terá certamente notado o leitor atento, por uma contradição: destino libertário soa, à primeira vista, como um oxímoro. Se o destino é determinação externa, influência histórica objetiva ou cadeia causal, seu conceito rechaçaria, de forma lógica, a liberdade. Liberdade é possibilidade de escolha, possibilidade da qual, segundo Sartre, não podemos escapar. Em certo sentido, nosso destino é a liberdade. Somos condenados à liberdade, escreveria Sartre. É esse precisamente o caminho percorrido pelo pensador em seu ensaio, ou seja, procurar demonstrar que Genet, por um ato de escolha, cria-se a si mesmo: como ladrão, como adorador do Mal e, por fim, como esteta e artista.
A literatura de Genet é uma permanente celebração do amor homossexual. Querelle, Nossa Senhora das Flores, Mignon, Gorgui, Divina, toda a galeria de personagens de Genet é composta por cafetões, travestis, adolescentes angelicais e másculos marinheiros, soldados e assaltantes que têm em comum a predileção pelas práticas homoeróticas. Nesse mundo particular, as mulheres quase não têm lugar, ou são senhoras de meia-idade, matronas ou cafetinas que se comprazem em realizar a fantasia edipiana psicanalítica ao acolher jovens amantes em seu leito (o comentário inescapável é que talvez todas sejam a mãe que Genet não conheceu e que o abandonou, definindo assim o primeiro de seus múltiplos exílios da normalidade).
Como escreve o próprio Genet, em Querelle: “Entre eles, apenas para eles, estabelecia-se um universo (com suas leis e relações secretas, invisíveis) onde a idéia da mulher estava banida.” Trata-se, portanto, de criar a mulher, ou seja, definir o papel passivo e feminino na relação homoerótica. Esse papel, Genet parece resguardar para si mesmo: ao lado dos homossexuais másculos, violentos e não efeminados, como Querelle (e mesmo este, num exercício de liberdade que confirmaria a leitura sartreana, rouba num jogo de dados com a intenção de ser sodomizado por um cafetão), há os fracos, emasculados, passivos, que são violados física e emocionalmente pelos anteriores; é neste campo preferencialmente que se localizam os afetos de Genet, num masoquismo de objeto que aceitou e interiorizou, em seu ser-para-si, a relação de objetivação de seu ser-para-o-outro (Sartre). Numa inversão (note-se que o termo já foi utilizado com freqüência para a qualificação da sexualidade homoerótica) da evidência do cogito cartesiano, a consciência de si de Genet perde seu caráter de autocertificação em detrimento do que ela é para os outros quando foi penetrada (violada?) pela acusação social de ser um ladrão, através da palavra vertiginosa que ouviu de seu pai adotivo, aos dez anos (tu és um ladrão!); antes desse acontecimento que teve papel de fundamento mítico de sua existência, Genet era uma criança religiosa, obediente e estudiosa. Ao aceitar a transmutação operada pela palavra do pai adotivo, tornou-se um ladrão, ao tomar como evidente o que era para os outros, e não sua percepção subjetiva. Descreve Genet em sua literatura essa experiência que foi a sua morte (e nascimento) ritual: “Perguntou a Lou por que ele roubara e ele só soube responder: – Porque os outros acham que sou um ladrão” (Nossa Senhora das Flores). A partir deste instante fundador, Genet torna-se objeto, e portanto, passivo. Passividade que se reflete tanto na inversão do papel sexual e adoção da feminilidade quanto na aceitação e interiorização do ser enquanto objeto.
A relação com a homossexualidade de Genet enquanto leitmotiv de construção formal encontra-se exposta de maneira paradigmática em Nossa Senhora das Flores, romance que é considerado a obra-prima de Genet e que Sartre julgava, ao lado do Ulysses de Joyce e da obra de Jean Giradoux, uma das “três grandes obras medievais do século XX”. Romance inteiramente escrito enquanto Genet estava no cárcere, toda a sua redação tem por função única o apelo ao desejo erótico de seu autor; Genet está preso e torna-se um onanista contumaz. Redige Nossa Senhora das Flores como estímulo às suas fantasias masturbatórias de solitário radical. Assim, a própria elaboração das personagens corresponde ao princípio formal de produzir excitação em seu criador. Genet identifica-se com Divina, personagem na qual projeta todo o seu masoquismo e desespero, porém ama os amantes de Divina, que não são outra coisa que estímulos de sua fantasia erótica. A criação das personagens, suas características físicas e psicológicas, não se funda em nenhum princípio realista ou de verossimilhança; pelo contrário, cumpre precisamente a função de ser, de forma realista, poderoso estímulo erótico para a imaginação masturbatória. Se, no interior do romance, os ciganos, cafetões e ladrões não cumprem sua função primordial de propiciar a ereção e o orgasmo do escritor encarcerado, ele simplesmente os alterará, confundirá suas características, ou cruelmente os punirá. Romance de catarse e expiação, exercício e expressão de liberdade de um suicidado pela sociedade, na bela expressão de Artaud ao referir-se a Van Gogh, é através da redação desse romance impossível, improvável, que Genet realizará sua metamorfose final. É a partir de Nossa Senhora das Flores, desse delírio de fetichista tornado poesia, que Genet tornar-se-á artista.
O mistério de Genet resolve-se, portanto, de forma surpreendente, em uma radical consciência da liberdade. Genet estava condenado e morto, desde a palavra vertiginosa de seu pai adotivo. Não tomou as decisões lógicas e cabíveis, não escolheu o possível e razoável, que seriam o suicídio ou a pacificação da loucura. Genet escolhe viver e, do mais fundo de sua miséria e solidão, decide tornar-se escritor. Dando novamente a palavra a Sartre: “Só a liberdade pode tornar inteligível uma pessoa em sua totalidade, mostrar essa liberdade em luta contra o destino, primeiro esmagada por suas fatalidades, depois voltando-se contra elas, digerindo-as pouco a pouco (…) provar que o gênio não é o dom, mas a saída que se inventa nos casos desesperados, descobrir a escolha que um escritor faz de si mesmo, da sua vida e do sentido do universo”. Tal foi a escolha operada pelo destino libertário de Jean Genet.
Carlos Eduardo Ortolan Miranda
mestrando em filosofia pela USP
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