O centro do mundo é onde vão seus pés. O resto é periférico







O centro do mundo é o sertão. A periferia é o que está por fora.

A maior invenção do século XVI foi o Brasil. E foi no Brasil que se inventou o sertão. Que se batizou, se nomeou o sertão.

O Sertão, este vocábulo obscuro, não cabe nos dicionários porque como dizem escritores, cientistas, e, é claro, o burburinho das praças, o sertão é tudo. Tudo ou nada.

Deserto. Desertão. De sertão. Sertão.

Diz-se que o sertão é seco, tradicional, que o sertão está dentro, que o sertão está fora do centro.

O Brasil inventou o sertão que queria, mas o sertão há muito se sabia e já estava aí quando nem a história existia. Assim, é lugar de fábula, de alegoria, é o lugar do olhar que descobre no fundo da caverna a luz que cria a sombra e o dia.

E foram os gregos sertanejos que criaram a filosofia.

O sertão tem a música dos chocalhos plangentes e parabólicas que se sustentam na taipa mais antiga.

No sertão, deus e o diabo rodopiam.

Sendo assim, como pode ser periferia algo que está no peito, coração bombeando seu sangue para as artérias, no Brasil, na Rússia, na África, na Inglaterra?! E não, não me venha com backlands e hinterlands, vaqueiro de iPod, selvagem da motocicleta!

O negócio é sertão mesmo, com todas as letras e sotaques, babel indiscreta.

Para além do Alentejo, o sertão é jangada jogada num mar de pedras. E não se engane não, profeta, ele não vira mar, ele vira mundo, mundo em espera.

Pois o sertão procura, encontra, doma e inaugura. Está em todos os lugares e, assim, se transfigura.

Do sertão nascem todos.

Do sertão saem todos, parto, ato, migração primordial.

E é este o fato: do sertão nascem todos: as rodovias, o sistema venoso, as cidadezinhas de grandes olhos e pequenas janelas, também as metrópoles, os seus membros, os prédios, os dedos de ruas, vielas, favelas.

E hoje no século pós-tudo o sertão é que é a grande invenção.

É o ponto equidistante entre o que se fala e o que se desconhece.

É o ponto equidistante entre o espelho e o que não se reconhece.

O sertão, esse corpo multiforme, é o ponto equidistante entre o que é dito e o que passa despercebido. Talvez por isso a melhor imagem seja a da ponte. Porque o sertão é o caminho do meio entre o meio e o homem.

Um corpo é a periferia de outro corpo. O centro de tudo é o desejo.

O desejo é o ponto de convergência. É para onde se voltam os olhares, as atenções, os interesses e os corpos.

O desejo é o centro do mundo. O desejo é o que está dentro do oco do oco do corpo do mundo.

Sertão, substantivo masculino. Região afastada dos núcleos urbanos, do litoral e das terras de plantio.

Interior.

O sertão é o que está por dentro, as vísceras e o desejo. O centro de tudo é o desejo.

O sertão é o ponto de convergência. É para onde se voltam os olhares, as atenções, os interesses e os corpos.

O sertão é o centro do mundo. O sertão é o que está dentro do oco do oco do corpo do mundo.

O sertão é tudo.

A periferia é o centro do que ela mesma inventa.


Micheliny Verunschk é autora de Geografia Íntima do Deserto (Landy, 2003).

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