Se você tem um livro pegando poeira em casa, que tal vender, trocar,doar, emprestar ou libertar? Ajude a construir um mundo com mais leitores e mais livros.
O centro do mundo é onde vão seus pés. O resto é periférico
O centro do mundo é o sertão. A periferia é o que está por fora.
A maior invenção do século XVI foi o Brasil. E foi no Brasil que se inventou o sertão. Que se batizou, se nomeou o sertão.
O Sertão, este vocábulo obscuro, não cabe nos dicionários porque como dizem escritores, cientistas, e, é claro, o burburinho das praças, o sertão é tudo. Tudo ou nada.
Deserto. Desertão. De sertão. Sertão.
Diz-se que o sertão é seco, tradicional, que o sertão está dentro, que o sertão está fora do centro.
O Brasil inventou o sertão que queria, mas o sertão há muito se sabia e já estava aí quando nem a história existia. Assim, é lugar de fábula, de alegoria, é o lugar do olhar que descobre no fundo da caverna a luz que cria a sombra e o dia.
E foram os gregos sertanejos que criaram a filosofia.
O sertão tem a música dos chocalhos plangentes e parabólicas que se sustentam na taipa mais antiga.
No sertão, deus e o diabo rodopiam.
Sendo assim, como pode ser periferia algo que está no peito, coração bombeando seu sangue para as artérias, no Brasil, na Rússia, na África, na Inglaterra?! E não, não me venha com backlands e hinterlands, vaqueiro de iPod, selvagem da motocicleta!
O negócio é sertão mesmo, com todas as letras e sotaques, babel indiscreta.
Para além do Alentejo, o sertão é jangada jogada num mar de pedras. E não se engane não, profeta, ele não vira mar, ele vira mundo, mundo em espera.
Pois o sertão procura, encontra, doma e inaugura. Está em todos os lugares e, assim, se transfigura.
Do sertão nascem todos.
Do sertão saem todos, parto, ato, migração primordial.
E é este o fato: do sertão nascem todos: as rodovias, o sistema venoso, as cidadezinhas de grandes olhos e pequenas janelas, também as metrópoles, os seus membros, os prédios, os dedos de ruas, vielas, favelas.
E hoje no século pós-tudo o sertão é que é a grande invenção.
É o ponto equidistante entre o que se fala e o que se desconhece.
É o ponto equidistante entre o espelho e o que não se reconhece.
O sertão, esse corpo multiforme, é o ponto equidistante entre o que é dito e o que passa despercebido. Talvez por isso a melhor imagem seja a da ponte. Porque o sertão é o caminho do meio entre o meio e o homem.
Um corpo é a periferia de outro corpo. O centro de tudo é o desejo.
O desejo é o ponto de convergência. É para onde se voltam os olhares, as atenções, os interesses e os corpos.
O desejo é o centro do mundo. O desejo é o que está dentro do oco do oco do corpo do mundo.
Sertão, substantivo masculino. Região afastada dos núcleos urbanos, do litoral e das terras de plantio.
Interior.
O sertão é o que está por dentro, as vísceras e o desejo. O centro de tudo é o desejo.
O sertão é o ponto de convergência. É para onde se voltam os olhares, as atenções, os interesses e os corpos.
O sertão é o centro do mundo. O sertão é o que está dentro do oco do oco do corpo do mundo.
O sertão é tudo.
A periferia é o centro do que ela mesma inventa.
Micheliny Verunschk é autora de Geografia Íntima do Deserto (Landy, 2003).
Frida Kahlo e Camille Claudel por Caio F.
Frida Khalo e Camille Claudel, estiveram presentes neste blog de diversas formas, através de fotografias e alguns textos. Folheando as páginas de um dos meus livros preferidos do escritor Caio Fernando Abreu "Pequenas Epifanias", relembrei duas crônicas lindas, onde Caio F. fala de Frida e Camille da forma que só ele sabia.
FRIDA - O MARTÍRIO DA BELEZA
Há anos Frida Kahlo me persegue. Tentei fugir, não consegui. Desde os anos 70, redescoberta pelas feministas, quando fotos dela começaram a aparecer nas revistas, eu tinha medo. E me recusava a ler. Bastava aquele rosto duro, de pedra, metade asteca, metade etrusco, buço e sobrancelhas cerrados, olhar direto, arrogante. Sem saber quase nada, eu intuía qualquer coisa terrível na história de Frida. Descobri depois: era ainda mais terrível do que poderia imaginar.
Veio então um filme mexicano extraordinário, numa exibição especial qualquer, com certa atriz magnífica (não lembro o título, talvez Frida, algum cinéfilo me diga por favor). Saí do cinema aos prantos. E devorei, numa noite, uma biografia escrita por Rauda Jamis. Aterrorizado, fascinado. Ó Deus, por que a beleza pode ser tão medonha? Ou ao contrário, por que o medonho pode ser tão belo? Vieram então os quadros. As cores, as corças feridas com cabeça humana, corpos esquartejados, colunas vertebrais metálicas, as pernas amputadas, pregos na carne: a Dor. Maiúscula, maior que tudo. E sempre o rosto. Em todos os quadros, o rosto indescritível.
Em Paris, há três anos, caminhando por uma mostra de arte mexicana no Beaubourg, de repente tive uma espécie de vertigem. Que, estranho, não vinha de dentro de mim, mas emanava de um ponto na parede. Olhei: era uma explosão de cores primárias, brilhantes, exageradas. Era uma das dezenas de auto-retratos de Frida Kahlo. Amarelo, vermelho, verde, lilás. Tive febre, depois. E comprei um livro de reproduções, as livrarias de SaintGermain-des-Prés estavam cheias deles. E as de Amsterdam, as de Berlim, as de Milão e Londres e Oslo também, fui descobrindo. A imagem martirizada de Frida Kahlo estava por toda a parte, como um Cristo-mulher contemporâneo. Um Cristo artista, bissexual, bêbado, drogado, adúltero, arrancando sua transcendência do próprio sangue, com as próprias unhas. E eu cruzava a Europa de ponta a ponta ouvindo Adriana Calcanhoto cantar no walkman: “Eu ando pelo mundo/ Prestando atenção em cores/ Cores que eu não alcanço/ Cores de Almodóvar, cores de Frida Kahlo, cores”.
Agora leio O diário de Frida Kahlo, um livro lindíssimo da Livraria José Olympio Editora, publicado no mundo todo este ano a partir de cadernos deixados no Banco do México. Os diários, escritos com tinta colorida, entremeados de desenhos perturbadores, com símbolos esotéricos hindus, celtas, pré-colombianos, cobrem os anos de 1944-1934. Sempre deitada, coberta de panos e mantas de seda índios, cheia de jóias extravagantes, ela olhava-se ao espelho e pintava e escrevia sem parar o que conhecia melhor: a própria dor. A coluna bífida, poliomielite, uma perna esmagada e amputada, várias fraturas na coluna, 33 cirurgias durante uma vida de apenas 47 anos.
Sobre aquele rosto, diz Carlos Fuentes, que a viu apenas uma vez no Palácio das Belas-Artes da Cidade do México: “O corpo é o templo da alma. O rosto é o templo do corpo. E quando o corpo decai, a alma não tem outro santuário a não ser o rosto”. E Frida, que era poeta, diz assim, cito em espanhol, que é mais belo: “Desde que me escribiste, en aquel día tán claro y lejano, he querido explicarte que no puedo irme de los días, ni regresar a tiempo ai otro tiempo. No te he olvidado — las noches son largas y dificiles”. E diz mais, escute, é importante: “Lo que más importa es la no-ilusión. La maílana nace”.
Passo noites longas, difíceis, o sono raro, entre fragmentos febris de suores e pesadelos, assombrado por Frida Kahlo. Choro muito. Não consigo terminar o livro, não consigo parar, não consigo ir em frente. Seguro sua mão imaginária no escuro do quarto e sei que seja qual for a dimensão da minha própria dor, não será jamais maior que a dela. Por isso mesmo, eu o suportarei.
Como ela, em sua homenagem, Frida.
EXISTE SEMPRE ALGUMA COISA DE AUSENTE
Paris — Toda vez que chego a Paris tenho um ritual particular. Depois de dormir algumas horas, dou uma espanada no rodenirterceiromundista e vou até Notre-Dame. Acendo vela, rezo, fico olhando a catedral imensa no coração do Ocidente. Sempre penso em Joana d’Arc, heroína dos meus remotos 12 anos; no caminho de Santiago de Compostela, do qual Notre-Dame é o ponto de partida — e em minha mãe, professora de História que, entre tantas coisas mais, me ensinou essa paixão pelo mundo e pelo tempo.
Sempre acontecem coisas quando vou a Notre-Dame. Certa vez, encontrei um conhecido de Porto Alegre que não via pelo menos á2o anos. Outra, chegando de uma temporada penosa numa Londres congelada e aterrorizada por bombas do IRA, na época da Guerra do Golfo, tropecei numa greve de fome de curdos no jardim em frente. Na mais bonita dessas vezes, eu estava tristíssimo. Há meses não havia sol, ninguém mandava notícias de lugar algum, o dinheiro estava no fim, pessoas que eu considerava amigas tinham sido cruéis e desonestas. Pior que tudo, rondava um sentimento de desorientação. Aquela liberdade e falta de laços tão totais que tornam-se horríveis, e você pode então ir tanto para Botucatu quanto para Java, Budapeste ou Maputo — nada interessa. Viajante sofre muito: é o preço que se paga por querer ver “como um danado”,feito Pessoa. Eu sentia profunda falta de alguma coisa que não sabia o que era. Sabia só que doía, doía. Sem remédio.
Enrolado num capotão da Segunda Guerra, naquela tarde em Notre-Dame rezei, acendi vela, pensei coisas do passado, da fantasia e memória, depois saí a caminhar. Parei numa vitrina cheia de obras do conde Saint-Germain, me perdi pelos bulevares da le dela Cité. Então sentei num banco do Quai de Bourbon, de costas para o Sena, acendi um cigarro e olhei para a casa em frente, no outro lado da rua. Na fachada estragada pelo tempo lia-se numa placa: “II y a toujours quelque choe d’abient qui me tourmente” (Existe sempre alguma coisa ausente que me atormenta) — frase de uma carta escrita por Camilie Claudel a Rodín, em 1886. Daquela casa, dizia aplaca, Camille saíra direto para o hospício, onde permaneceu até a morte. Perdida de amor, de talento e de loucura.
Fazia frio, garoava fino sobre o Sena, daquelas garoas tão finas que mal chegam a molhar um cigarro. Copiei a frase numa agenda. E seja lá o que possa significar “ficar bem” dentro desse desconforto inseparável da condição, naquele momento justo e breve — fiquei bem. Tomei um Calvados, entrei numa galeria para ver os desenhos de Egon Schiele enquanto a frase de Camille assentava aos poucos na cabeça. Que algo sempre nos falta — o que chamamos de Deus, o que chamamos de amor, saúde, dinheiro, esperança ou paz. Sentir sede, faz parte. E atormenta.
Como a vida é tecelã imprevisível, e ponto dado aqui vezenquando só vai ser arrematado lá na frente. Três anos depois fui parar em Saint-Nazaire, cidadezinha no estuário do rio Loire, fronteira sul da Bretanha. Lá, escrevi uma novela chamada Bem longe de Marienbad , homenagem mais à canção de Barbara que ao filme de Resnais. Uma tarde saí a caminhar procurando na mente uma epígrafe para o texto. Por “acaso”, fui dar na frente de um centro cultural chamado (oh!) Camille Claudel. Lembrei da agenda antiga, fui remexer papéis. E lá estava aquela frase que eu nem lembrava mais e era, sim, a epígrafe e síntese (quem sabe epitáfio, um dia) não só daquele texto, mas de todos os outros que escrevi até hoje. E do que não escrevi, mas vivi e vivo e viverei.
Pego o metrô, vou conferir. Continua lá, a placa na fachada da casa número 1 do Quai de Bourbon, no mesmo lugar. Quando um dia você vier a Paris, procure. E se não vier, para seu próprio bem guarde este recado: alguma coisa sempre faz falta. Guarde sem dor, embora doa, e em segredo.
O Estado de S. Paulo, 3/4/1994
FRIDA - O MARTÍRIO DA BELEZA
Há anos Frida Kahlo me persegue. Tentei fugir, não consegui. Desde os anos 70, redescoberta pelas feministas, quando fotos dela começaram a aparecer nas revistas, eu tinha medo. E me recusava a ler. Bastava aquele rosto duro, de pedra, metade asteca, metade etrusco, buço e sobrancelhas cerrados, olhar direto, arrogante. Sem saber quase nada, eu intuía qualquer coisa terrível na história de Frida. Descobri depois: era ainda mais terrível do que poderia imaginar.
Veio então um filme mexicano extraordinário, numa exibição especial qualquer, com certa atriz magnífica (não lembro o título, talvez Frida, algum cinéfilo me diga por favor). Saí do cinema aos prantos. E devorei, numa noite, uma biografia escrita por Rauda Jamis. Aterrorizado, fascinado. Ó Deus, por que a beleza pode ser tão medonha? Ou ao contrário, por que o medonho pode ser tão belo? Vieram então os quadros. As cores, as corças feridas com cabeça humana, corpos esquartejados, colunas vertebrais metálicas, as pernas amputadas, pregos na carne: a Dor. Maiúscula, maior que tudo. E sempre o rosto. Em todos os quadros, o rosto indescritível.
Em Paris, há três anos, caminhando por uma mostra de arte mexicana no Beaubourg, de repente tive uma espécie de vertigem. Que, estranho, não vinha de dentro de mim, mas emanava de um ponto na parede. Olhei: era uma explosão de cores primárias, brilhantes, exageradas. Era uma das dezenas de auto-retratos de Frida Kahlo. Amarelo, vermelho, verde, lilás. Tive febre, depois. E comprei um livro de reproduções, as livrarias de SaintGermain-des-Prés estavam cheias deles. E as de Amsterdam, as de Berlim, as de Milão e Londres e Oslo também, fui descobrindo. A imagem martirizada de Frida Kahlo estava por toda a parte, como um Cristo-mulher contemporâneo. Um Cristo artista, bissexual, bêbado, drogado, adúltero, arrancando sua transcendência do próprio sangue, com as próprias unhas. E eu cruzava a Europa de ponta a ponta ouvindo Adriana Calcanhoto cantar no walkman: “Eu ando pelo mundo/ Prestando atenção em cores/ Cores que eu não alcanço/ Cores de Almodóvar, cores de Frida Kahlo, cores”.
Agora leio O diário de Frida Kahlo, um livro lindíssimo da Livraria José Olympio Editora, publicado no mundo todo este ano a partir de cadernos deixados no Banco do México. Os diários, escritos com tinta colorida, entremeados de desenhos perturbadores, com símbolos esotéricos hindus, celtas, pré-colombianos, cobrem os anos de 1944-1934. Sempre deitada, coberta de panos e mantas de seda índios, cheia de jóias extravagantes, ela olhava-se ao espelho e pintava e escrevia sem parar o que conhecia melhor: a própria dor. A coluna bífida, poliomielite, uma perna esmagada e amputada, várias fraturas na coluna, 33 cirurgias durante uma vida de apenas 47 anos.
Sobre aquele rosto, diz Carlos Fuentes, que a viu apenas uma vez no Palácio das Belas-Artes da Cidade do México: “O corpo é o templo da alma. O rosto é o templo do corpo. E quando o corpo decai, a alma não tem outro santuário a não ser o rosto”. E Frida, que era poeta, diz assim, cito em espanhol, que é mais belo: “Desde que me escribiste, en aquel día tán claro y lejano, he querido explicarte que no puedo irme de los días, ni regresar a tiempo ai otro tiempo. No te he olvidado — las noches son largas y dificiles”. E diz mais, escute, é importante: “Lo que más importa es la no-ilusión. La maílana nace”.
Passo noites longas, difíceis, o sono raro, entre fragmentos febris de suores e pesadelos, assombrado por Frida Kahlo. Choro muito. Não consigo terminar o livro, não consigo parar, não consigo ir em frente. Seguro sua mão imaginária no escuro do quarto e sei que seja qual for a dimensão da minha própria dor, não será jamais maior que a dela. Por isso mesmo, eu o suportarei.
Como ela, em sua homenagem, Frida.
EXISTE SEMPRE ALGUMA COISA DE AUSENTE
Paris — Toda vez que chego a Paris tenho um ritual particular. Depois de dormir algumas horas, dou uma espanada no rodenirterceiromundista e vou até Notre-Dame. Acendo vela, rezo, fico olhando a catedral imensa no coração do Ocidente. Sempre penso em Joana d’Arc, heroína dos meus remotos 12 anos; no caminho de Santiago de Compostela, do qual Notre-Dame é o ponto de partida — e em minha mãe, professora de História que, entre tantas coisas mais, me ensinou essa paixão pelo mundo e pelo tempo.
Sempre acontecem coisas quando vou a Notre-Dame. Certa vez, encontrei um conhecido de Porto Alegre que não via pelo menos á2o anos. Outra, chegando de uma temporada penosa numa Londres congelada e aterrorizada por bombas do IRA, na época da Guerra do Golfo, tropecei numa greve de fome de curdos no jardim em frente. Na mais bonita dessas vezes, eu estava tristíssimo. Há meses não havia sol, ninguém mandava notícias de lugar algum, o dinheiro estava no fim, pessoas que eu considerava amigas tinham sido cruéis e desonestas. Pior que tudo, rondava um sentimento de desorientação. Aquela liberdade e falta de laços tão totais que tornam-se horríveis, e você pode então ir tanto para Botucatu quanto para Java, Budapeste ou Maputo — nada interessa. Viajante sofre muito: é o preço que se paga por querer ver “como um danado”,feito Pessoa. Eu sentia profunda falta de alguma coisa que não sabia o que era. Sabia só que doía, doía. Sem remédio.
Enrolado num capotão da Segunda Guerra, naquela tarde em Notre-Dame rezei, acendi vela, pensei coisas do passado, da fantasia e memória, depois saí a caminhar. Parei numa vitrina cheia de obras do conde Saint-Germain, me perdi pelos bulevares da le dela Cité. Então sentei num banco do Quai de Bourbon, de costas para o Sena, acendi um cigarro e olhei para a casa em frente, no outro lado da rua. Na fachada estragada pelo tempo lia-se numa placa: “II y a toujours quelque choe d’abient qui me tourmente” (Existe sempre alguma coisa ausente que me atormenta) — frase de uma carta escrita por Camilie Claudel a Rodín, em 1886. Daquela casa, dizia aplaca, Camille saíra direto para o hospício, onde permaneceu até a morte. Perdida de amor, de talento e de loucura.
Fazia frio, garoava fino sobre o Sena, daquelas garoas tão finas que mal chegam a molhar um cigarro. Copiei a frase numa agenda. E seja lá o que possa significar “ficar bem” dentro desse desconforto inseparável da condição, naquele momento justo e breve — fiquei bem. Tomei um Calvados, entrei numa galeria para ver os desenhos de Egon Schiele enquanto a frase de Camille assentava aos poucos na cabeça. Que algo sempre nos falta — o que chamamos de Deus, o que chamamos de amor, saúde, dinheiro, esperança ou paz. Sentir sede, faz parte. E atormenta.
Como a vida é tecelã imprevisível, e ponto dado aqui vezenquando só vai ser arrematado lá na frente. Três anos depois fui parar em Saint-Nazaire, cidadezinha no estuário do rio Loire, fronteira sul da Bretanha. Lá, escrevi uma novela chamada Bem longe de Marienbad , homenagem mais à canção de Barbara que ao filme de Resnais. Uma tarde saí a caminhar procurando na mente uma epígrafe para o texto. Por “acaso”, fui dar na frente de um centro cultural chamado (oh!) Camille Claudel. Lembrei da agenda antiga, fui remexer papéis. E lá estava aquela frase que eu nem lembrava mais e era, sim, a epígrafe e síntese (quem sabe epitáfio, um dia) não só daquele texto, mas de todos os outros que escrevi até hoje. E do que não escrevi, mas vivi e vivo e viverei.
Pego o metrô, vou conferir. Continua lá, a placa na fachada da casa número 1 do Quai de Bourbon, no mesmo lugar. Quando um dia você vier a Paris, procure. E se não vier, para seu próprio bem guarde este recado: alguma coisa sempre faz falta. Guarde sem dor, embora doa, e em segredo.
O Estado de S. Paulo, 3/4/1994
Oração à Nossa Senhora dos que amam sozinhos - Xico Sá
Reproduzo aqui uma das últimas crônicas públicadas no blog do genial Xico Sá que fala de pessoas que vivem seus amores na solidão e na súplica. Para ilustrar nada melhor que "A Suplicante" de Camille Claudel.
ORAÇÃO À NOSSA SENHORA DOS QUE AMAM SOZINHOS
Nossa Sra. dos que Amam Sozinho, perdoa-me pela insistência, nem mais é por tanto quere-la, é por deixar claro, nega que sopra das intimidades dessa oração, que só ela me faz passar da conta, perversa, cair no abismo mais lindo do gozo sem volta, como naquele encosto de beira de estrada, como na rodovia estrangeira de Sam Shepard, crônicas de motel, simbora!
Nossa Sra. dos que só pensam nela, cotovelos lanhados de tanta espera, tantos sustos nas ruas, nos bares, “é ela!!!”, Nossa Sra. Dos Cotovelos da Surpresa e das janelas, tão gastos, cinzas, peles, dobras, e tanta fome de viver aqui dentro, megalomaníaco, épico, terá sido a força do desprezo???
Não creio, sr. Albero Moravia.
É mesmo a paudurescência, nostalgia precoce das grandes histórias, o tempo inteiro, pensando, pensando, pensando, mas no fundo gostas!
Os joelhos lanhados pela romaria, devoção e insistência.
Nossa Sra. da Vida Alongada que consegue, nos seus exercícios de Kama Sutra, me levar à coisa mais sagrada.
Nossa Senhora!!!
Amor demorado, anjo exterminador da alcova sem pílulas milagrosas.
Amor por tê-la, rara.
Beijá-la delicadamente, como um cristão que dissolve na boca uma hóstia.
Amar por horas, riachinhos d´águas que não se sabem donde, cada cantinho dum mapa que se inventou só pra se perder depois, sentimento é a verdadeira bússola dum homem, perdido docemente lá embaixo, lá embaixo, daquelas tuas vestes modernas que nunca te escondem.
Lua cheia, vida crescente.
Escuto Lê Déserteus, Boris Vian, ouviste?.
Nossa Senhora dos que sentem muito e amam sozinho, rogai por nós que recorremos a vós!
ORAÇÃO À NOSSA SENHORA DOS QUE AMAM SOZINHOS
Nossa Sra. dos que Amam Sozinho, perdoa-me pela insistência, nem mais é por tanto quere-la, é por deixar claro, nega que sopra das intimidades dessa oração, que só ela me faz passar da conta, perversa, cair no abismo mais lindo do gozo sem volta, como naquele encosto de beira de estrada, como na rodovia estrangeira de Sam Shepard, crônicas de motel, simbora!
Nossa Sra. dos que só pensam nela, cotovelos lanhados de tanta espera, tantos sustos nas ruas, nos bares, “é ela!!!”, Nossa Sra. Dos Cotovelos da Surpresa e das janelas, tão gastos, cinzas, peles, dobras, e tanta fome de viver aqui dentro, megalomaníaco, épico, terá sido a força do desprezo???
Não creio, sr. Albero Moravia.
É mesmo a paudurescência, nostalgia precoce das grandes histórias, o tempo inteiro, pensando, pensando, pensando, mas no fundo gostas!
Os joelhos lanhados pela romaria, devoção e insistência.
Nossa Sra. da Vida Alongada que consegue, nos seus exercícios de Kama Sutra, me levar à coisa mais sagrada.
Nossa Senhora!!!
Amor demorado, anjo exterminador da alcova sem pílulas milagrosas.
Amor por tê-la, rara.
Beijá-la delicadamente, como um cristão que dissolve na boca uma hóstia.
Amar por horas, riachinhos d´águas que não se sabem donde, cada cantinho dum mapa que se inventou só pra se perder depois, sentimento é a verdadeira bússola dum homem, perdido docemente lá embaixo, lá embaixo, daquelas tuas vestes modernas que nunca te escondem.
Lua cheia, vida crescente.
Escuto Lê Déserteus, Boris Vian, ouviste?.
Nossa Senhora dos que sentem muito e amam sozinho, rogai por nós que recorremos a vós!
"Há sempre algo de ausente que me atormenta"
Esta carta faz parte do catálogo da exposição que a Pinacoteca do Estado de São Paulo, realizou em São Paulo, em 2006.
Querida Camille,
Organizando os meus papéis o mês passado, encontrei várias cartas suas endereçadas a mim. Reli-as; datam todas de 1905, ano em que organizei para você, em minha galeria, a exposição que entusiasmou a crítica, sem que, infelizmente! Quebrasse o gelo dos amadores.
Quanta coisa aconteceu depois! Sua partida, a guerra, a morte de Rodin, a doença que me manteve afastado de Paris até 1926…
Já não sabia de seu paradeiro…No mundo matreiro da escultura, Rodin, você, possivelmente mais três ou quatro, tinham introduzido a autenticidade, isto não se esquece. X. guarda ainda uma recordação maravilhada do seu mármore – A Suplicante - ( fundido por mim em bronze para o Salão de 1904), que ele considera o manifesto da escultura moderna.
Você era enfim “você mesma”, totalmente liberada da influência de Rodin, tão grande pela inspiração quanto pela técnica. A prova da primeira tiragem, enriquecida por sua assinatura, é uma das peças mestras de minha galeria. Nunca olho para ela sem experimentar uma indizível emoção. Parece até que a estou revendo. Os lábios entreabertos, as narinas palpitantes, essa luz no olhar, tudo isso grita pela vida no que ela tem de mais misterioso. Com você, íamos deixar o mundo das falsas aparências pelo do pensamento. Que gênio ! A palavra não é bastante forte. Como pôde você privar-nos de tanta beleza ?
Num dia em que Rodin me fazia uma visita, ví-o subitamente imobilizar-se diante desse retrato, contemplá-lo, acariciar suavemente o metal e chorar. Sim, chorar. Como uma criança. Faz quinze anos que ele morreu. Na realidade, ele nunca amou senão você, Camille, posso dizê-lo hoje. Tudo o mais – essas aventuras lamentáveis, essa ridícula vida mundana, ele que no fundo permanecia um homem do povo – era a válvula de escape de uma natureza de excessos.
Oh! Sei bem, Camille, que ele a abandonou, não procuro justificá-lo. Você sofreu muito por ele. Mas não retiro nada do que acabo de escrever. O tempo reporá tudo no seu lugar.
O que posso fazer agora por você, querida Camille Claudel?
Escreva-me, segure a mão que lhe estendo. Não deixei nunca de ser seu amigo.
Com minha afeição e respeito.
Seu Eugène Blot
3 de setembro de 1932
Os Prostitutos Travestis da Lapa
"Considerem-se a marginalidade, o desemprego, a homossexualidade, o transvestitismo (sic), a prostituição, a deterioração do próprio bairro e, então, esse personagem, esses personagens, tal coletividade: os prostitutos travestis da Lapa [RJ] adquirem a densidade jamais suposta pelo senso comum. Monas: mulheres de brinquedo.
Há uma expressão frequente entre travestis da Lapa para designar o cúmulo do negativo: o ó. Como diz Brenda:
'Mona, eu não aguento mais. É o ó, mona. Esses homens suados, fedorentos, em cima da gente. Eu queria arranjar um emprego, mona. Deixo a barba crescer, corto o cabelo... faço qualquer coisa'.
Quando se lembra que não deve ter ilusões (será objeto de chacota, risadinhas, 'olha a bicha' etc.), ela revela ter consciência disso, mas preferiria. Seria melhor que aquela vida, ali.
Viena também. Seu orgulho mal se contém quando conta que está empregada. Sobretudo porque seu trabalho não agride sua condição (sua trans-condição), já que o dono da empresa foi travesti e ali sua ocupação é a de bordar, costurar, reformar e fazer roupas 'finas' (para casamentos, cerimônias etc.).
Uma noite de domingo, conversando na sinuca da rua do Riachuelo, Leila confessa em seu carregado sotaque pernambucano que tem nojo do homem depois que 'transam'. Declara em meio a caretas e múltiplos gestos irritados.
Ambiguidade de situação que faz pendant com a ambiguidade da condição. O clima de convivência com o travesti configura um processo de interação que o dotará de existência social. Não significa aceitação, significa processo social tenso, contraditório e ambíguo, que fatalmente, pelas relações estabelecidas e pelas redes criadas, tornará o travesti aceito por certas áreas, camadas, grupos sociais.
Mas isso não impede que Lua seja assassinada com 16 tiros e enterrada como indigente em Campo Grande [RJ], notícia que recebo após a defesa da dissertação, no dia 31 de março de 1992.
Isso não impede que por volta de seis da manhã alguém chame Sandra, na vila onde morava na rua do Lavradio [Lapa, RJ], e a receba com dois tiros na cabeça. Ninguém tem a menor idéia de quem matou Sandra, mas sabe-se perfeitamente qual foi o ex-policial que disparou contra Lua, que praticava pequenos furtos, comia e não pagava.
Na noite de 13 de julho de 1992, uma segunda-feira, Emília me conta outro assassinato 'por causa de vinte mil cruzeiros'.
Meados do ano 1991. Leila sumiu da Lapa. Durante cerca de um mês ficou reclusa, empenhada em abandonar a calçada e só atender por telefone.
Pode-se fazer uma leitura moralista dos registros acima. Será fácil, para quem o queira, avistar em tais declarações a precariedade do papel assumido, os impasses de uma condição ou o bom arrependimento a coroar uma vida de 'erros'.
Ao contrário de tal postura, percebe-se aqui, no momento histórico em que vivem os travestis (com a retração progressiva da rejeição social que aqui e ali aflora violenta, porque desesperada), a insatisfação contra as derradeiras limitações. Pela voz de vários, o que se pede é poder estudar, poder trabalhar, ter moradia digna, ter uma profissão, sem abrir mão de sua transcondição.
As relações entre o domínio da psicologia e o da sociologia, ou as fronteiras entre o território social e o âmbito psicológico constituem questões relevantes e problemáticas para o desenvolvimento de inúmeros temas e áreas nas ciências humanas. Mas são poucos os temas ou questões em que tal delimitação emerge como um problema tão crucial quanto no caso do estudo do universo dos travestis.
Tal psicologização confina o travesti ao árido território da patologia quando os 'bem-pensantes' e a 'sociedade moral' dele se ocupam. Ou delata-o como inconsequente palhaço a erodir a respeitabilidade do mundo heterossexual quando quem se ocupa dele é o homossexual de auto-representação masculina."
Extraído de SILVA, HÉLIO R. S. Travesti - A Invenção do Feminino. Etnografia. RJ: Relume-Dumará/Iser, 1993, págs. 120-122.
Frida
A pintora mexicana Frida Kahlo teve uma vida intensa, que se refletiu na arte que produziu: o acidente com um bonde que lhe deixou sérias sequelas físicas e o casamento com o artista Diego Rivera, um eterno infiel à união conjugal. Considerada uma das maiores artistas do século 20, hoje suas obras pertencem a acervos importantes como o do Museu de Arte Moderna de Nova York, o MoMA.
Este mês, cerca de 400 imagens inéditas da sua coleção pessoal vêm a público no livro Frida Kahlo, Suas Fotos. Até 2004, elas estavam trancadas, por determinação de Rivera, na residência onde o casal morava, a Casa Azul, na Cidade do México. Veja alguns dos grandes momentos reunidos neste lançamento.
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Frida Kahlo: suas fotos está sendo lançado no Brasil ao mesmo tempo em que chega aos leitores do México, França, Espanha, Alemanha, Estados Unidos, Canadá e América Latina. A história do livro é quase uma narrativa surrealista. Já viúvo de Frida, Diego Rivera (1886-1957), que havia criado na Casa Azul (onde Frida passou toda sua vida) um museu dedicado à mulher, deixa instruções a Dolores Olmedo para que preserve os documentos do casal, só divulgando seu conteúdo 15 anos depois de sua morte. Dolores radicaliza as instruções de Diego e só agora, mais de 50 anos depois, os segredos foram revelados. Entre os papéis estão cerca de 6 mil fotografias, que permaneceram todos esses anos trancafiadas no banheiro da Casa Azul, no bairro de Coyoacán, na capital mexicana. O livro é uma seleção de 400 imagens desse conjunto.
Mas, na verdade, é muito mais que isso. Organizado em sete partes, o livro traça a historia visual da vida de Frida, na qual uma foto é capaz de ser exemplo do sofrimento físico que a atormentou seguidamente, da poliomielite da infância ao grave acidente de bonde na adolescência, que a fez penar em tratamentos dolorosos até a morte; outra imagem revela seus amores; uma série de registros mostra a influência do pai fotógrafo em sua obsessão por autorretratos; os amigos são personagens em vários momentos, do revolucionário Trótski ao capitalista Henry Ford, do artista experimental Duchamp a Dolores del Rio. Há momentos da infância e da maturidade; de amor e sofrimento. Retratos de alma, alguns deles cortados com estilete para extirpar rostos e outros com marcas de batom para manifestar afeto vivo.
Cada uma das partes ganhou uma introdução escrita por especialistas na vida e obra da artista. São textos que trazem informações importantes e análises compreensivas de momentos marcantes da existência de Frida Kahlo. São textos-guia, legendas que resultam de um esforço em penetrar no universo das imagens, no contexto histórico e na psicologia complexa da personagem. “Origens” mostra que, além do pai fotógrafo, a mãe, Matilde Calderón, foi negligenciada nas biografias da filha, talvez em razão de sua postura conservadora. A segunda parte, “Papai”, apresenta a sensibilidade estética de Guillermo (alemão nascido Wilhelm) para os retratos, mas também para a postura intelectual cética do homem desterrado de sua cultura.
A terceira seção, “Casa Azul”, traz imagens domésticas, de amigos e da convivência com Diego, além da arqueologia dos antigos moradores da residência. Em “O corpo dilacerado”, um dos temas mais presentes na obra de Frida Kahlo ganha um realismo duro: são imagens de radiografias, tratamentos dolorosos, períodos de recuperação no leito, visitas hospitalares e composições dramáticas com brinquedos (como uma charrete tombada). Na seção “Amores” estão as fotos escolhidas de relacionamentos de Frida, que escrevem histórias incompletas, com dedicatórias misteriosas e detalhes fascinantes.
As duas partes finais, “Fotografia” e “Luta política”, reúnem documentos visuais que fazem referência às grandes bandeiras políticas da época, dando a dimensão – presente em todo o acervo – da mescla humana de fantasia e apelo à realidade. Nesse itinerário visual, o livro vai do foco fechado na alma das pessoas à grande angular do panorama de uma época.
Entrevista Exclusiva com José Mojica Marins
Personagem folclórico da cultura brasileira, revolucionário, maldito, marginal. Com 63 anos de atuação no cinema brasileiro, José Mojica Marins criador do mitológico personagem Zé Do Caixão, sempre traz em suas palavras, novos projetos, idéias de roteiros e a vontade de sempre produzir, apesar das dificuldades de se fazer cinema.
Cineasta pioneiro em produzir filmes de horror no Brasil e criador do primeiro personagem de terror feito originalmente para o cinema, o diretor começou a fazer filmes ainda jovem, aos 10 anos. Seu pai trabalhava em uma sala de cinema no centro de São Paulo e ele passou a filmar pequenos curtas e projetá-los para pagar as despesas da produção. Desde então, grande parte de sua obra foi feita com pouca verba.
Com grande identificação com o público jovem, tendo se apresentado junto de bandas de Heavy Metal, o cineasta confunde-se com seu personagem e às vezes não sabemos se é Mojica ou Zé do Caixão quem nos fala.
Redescoberto pela crítica internacional, Cofin Joe (como é conhecido no exterior), foi elogiado pelas principais revistas de cinema do mundo, dentre elas a Cahiers Du Cinema. Homenageado no Sundance Film Festival de 2001 com uma Menção Honrosa, o cineasta foi apresentado como "Bela Lugosi dos trópicos".
Cultuado por jovens cineastas que hoje produzem filmes em celular e câmeras caseiras, inspirados pelo mestr, o cineasta sobreviveu à margem da indústria, produzindo filmes de terror com a nossa cara, que hoje são reconhecidos no mundo todo.
Por Daiverson Machado – daiversom.machado@emiolo.com
O que você diria sobre um jovem que quer fazer cinema?
A sétima arte é a coisa mais forte que nós temos. Fazer cinema é fazer algo cultural e faz você se elevar mais que os outros, tornando-se com o tempo, um ser completo. Em minhas viagens, eu incentivo novos cineastas a se mobilizarem junto aos governos, até mesmo a realizar passeatas com o Presidente da República em busca de verbas.e principalmente que estas verbas tenham destinação corretas.
Qual experiência mais assustadora que você já teve na vida?
Já dormi em cemitérios, necrotério para ver se encontrava alma penada, seres de outro mundo ou alguma coisa nesse sentido, mas não vi nada, por isso não acredito. Mas a experiência mais assustadora da minha vida aconteceu a mais de 10 anos no Rio Grande do Sul, quando eu, minha companheira, amigos e equipe de filmagem, conhecemos um homem que dizia ter vindo dos EUA com a esposa . Em uma quarta feira de cinzas, ele nos convidou para visitar uma fazenda, propondo-nos então, que ficássemos até na sexta feira. Este homem mostrava ser uma pessoal “legal” e durante a conversa, começou a falar sobre sacrifício de animais e me perguntou o que eu achava sobre sacrifícios humanos. Eu inventei uma história dizendo que isso trazia uma energia negativa que acompanhava e prendia a pessoa para o resto da vida e esta começava a fazer coisas erradas e que era recomendável evitar sacrifício de humanos. A partir daí, eu comecei a me apavorar. O sujeito apresentou- me o pai, fundador de uma cidadezinha do Rio Grande do Sul, juntamente com a mãe. Já estavam há 20 anos numa cama gemendo. Até aí, o susto foi tão grande que amigos e equipe de filmagem que me acompanhavam saíram do local, restando-me apenas a minha companheira. O homem pergunta o que nós achamos de acabar com aquilo. Nos demos a entender que era perfeito. Eu pedi para ser liberado, juntamente com minha companheira, amigos e equipe de filmagem. O homem propôs irmos à igreja após o jantar. O local do jantar era, repleto de ratos, gatos, um local muito feio. Após o jantar, seguimos rumo à igreja. Chegando lá, eu descobri que o homem expulsou o padre, consequentemente, encontraram a igreja completamente vazia. Foi feito uma churrascada com vinho, então o homem pediu que eu fizesse um discurso como Mojica e em seguida, outro como Zé do Caixão. Naquele momento, eu já acreditava estar com os dias contados. Aquele homem dizia não gostar de humanos. Senti meu medo aprofundar-se, comentei à minha companheira que o homem parecia querer nos matar. Pensei em inventar algo assustador, sabia que não poderia demonstrar medo, senão poderia ter realmente as nossas vidas ameaçadas. O homem após apresentar os pais, agora queria apresentar o filho, os avós... estávamos num cemitério nos fundos da casa daquele homem. Os ossos estavam fora da terra! Para mim, aquele era o teste final. Ou topava ou virava cadáver eu e a minha companheira. Ao ser apresentado para o “tio”, eu cumprimentei o cadáver. Com as “primas” tive que dançar valsa com o esqueleto, beijá-lo, enquanto era observado pelo homem e seu secretário. Ao fim, tudo terminou bem. O homem após tudo isso disse ter gostado de mim, tornaram-se meus fãs e sugeriu que fizéssemos um filme de vampiro juntos. De volta à São Paulo, eu e minha companheira fizemos um apanhado do caso, denunciamos ao governo gaúcho e ao Jornal Folha de São Paulo, então descobrimos que para aquele local eram levados jovens sem família. Após investigação o homem foi preso.
Eu vi em uma entrevista, você falando que um dos primeiros filmes que te deu medo, foi um filme sobre doenças venéreas. Você acha que o ser humano assusta mais que qualquer alma do outro mundo?
Senti muito medo ao assistir um filme sobre doenças venéreas, mas o que mais me mete medo é o ser humano, pois esse, na minha opinião, faz realmente mal.
Quais são seus próximos projetos?
Eu estou resolvendo com Canal Brasil mais uma temporada que vai até abril de 2011 e tenho viajado até Pouso Alegre, Sul de Minas Gerais, para descobrir mais sobre uma lenda de um homem que cometeu um estupro, onde a população pegou, matou e o interrou. Mas descobriram que após um ano a terra não havia comido a carne e que de tempo em tempos ele levantava uma das mãos. Então a população queimou o corpo e jogou as cinzas no mar. No tempo em que eu estiver lá, pretendo oferecer duas oficinas na cidade, além de fazer um filme relativo a esta lenda, cujo nome escolhido é “Corpo Seco”.
Mande-nos uma de suas pragas:
Ano de eleição, na minha opinião é um ano terrível, então eu como Zé do Caixão vou jogar uma praga aos políticos corruptos do Brasil: “A todos os políticos corruptos, que fazem a sua vida sem olhar para o próximo, principalmente a quem o elegeu aqui vai aminha praga: “Que sua língua se transforme em cobra e devore toda as suas entranhas, que sua parte sexual acabe completamente e suas tripas fiquem se arrastando com você por toda a eternidade sentindo os horrores do que vai acontecer, se de repente e você abusar das pessoas que te elegeram e que precisam da sua ajuda”.
"Zé Mojica na busca de uma Manchete" por Jairo Ferreira
"Respeitada seja a visão de quem quer ver; mesmo que essa visão provenha das projeções mentais de um cego". Com essa epígrafe visionária, digna do melhor Jorge Luiz Borges, do melhor Jerônimo Bosch e do melhor William Blake, para citar apenas três gênios poéticos de diferentes épocas e nacionalidades, tem início "Manchete de Jornal – Mundo Mercado do Sexo", extraordinário filme de José Mojica Marins que estréia hoje nos cines Premier e Avenida.
Comparar Mojica Marins aos gênios citados pode parecer ousadia exagerada, mas não é. O cineasta paulista não pode ser entendido e nem discutido a partir de referências meramente cinematográficas, porque o cinema brasileiro está vivendo um momento medíocre, um vôo rasante na cultura, enquanto Marins se destaca como artista único, o primeiro dos cineastas obrigatórios desse deserto fílmico. O único detalhe é este: a necessidade de separar o joio do trigo, de não confundir "Delírios de um Anormal" com "À Meia Noite Encarnarei no teu Cadáver" ou "Perversão" com "À Meia Noite Levarei sua Alma". Em outras palavras: Marins é capaz do pior e do melhor e "Manchete de Jornal" é o que ele fez de diferente depois de alguns anos de repetições e desacertos. Fala o gênio:
– "Manchete de Jornal – Mundo Mercado do Sexo" é um filme que fiz num fim de ano, com produção dos meu técnicos habituais, dedicado a eles, uma boa forma de dar um prêmio a eles. Náo vou ganhar um tostão com esse filme porque as porcentagens são todas da equipe, principalmente Satã, o homem que tem sido visto como meu guarda-costas, que me acompanha em tudo o que faço. Foi ele que me socorreu no fim do ano passado, quando o caixão que também me acompanha nos últimos 16 anos caiu sobre mim, no fim de uma macabra festa de aniversário (onde o homenageado era justamente o caixão), o que me valeu uma boa fratura da clavícula. Eu estava formando uma dupla com Satã, semelhante ao Mandrake e ao Lothar, e não poderia deixar de ir à Espanha mostrar meus filmes. Se consegui chegar lá, munido de sete atestados médicos, foi com a colaboração de Satã.
Marins, Satã e Antonio Ráfales: menção especial na Espanha
– O que eu mostro nesse "Manchete de Jornal" é a trajetória de um jornalista que sai de casa de manhã, buscando uma manchete. Mas é preciso saber ver: o que eu entendo por jornalismo não é o que outros entendem. Já me perguntaram porque esse jornalista, que eu mesmo interpreto no filme, tem as unhas compridas. Respondo que ele está fazendo uma promessa: não cortará as unhas enquanto não conseguir a manchete, se conseguir. A manchete que ele busca não é uma noticia comum, sensacionalista, dessas que se lê nos jornais diariamente. Esse jornalista busca algo que os outros jornalistas não buscam e que é a informação que ninguém deu. Ele não é um repórter acomodado e por isso sofre, fica decepcionado com a realidade. O roteiro é fruto de minhas leituras do Apocalipse bíblico, mas interpretado segundo a minha visão.
Como já assisti ao filme, posso confirmar que Mojica Marins está na pista certa da informação nova. O que o jornalista de seu filme busca não é nada mais do que a informação de primeiro grau, essa mosca branca dos anos 70. Com efeito e como é feito: isso é o mais importante do filme. Contando com um mínimo de recursos de produção, o cineasta consegue o máximo de concentração. Há no filme, inclusive, uma sequência de implosão da informação: o jornalista visualiza o Apocalipse da comunicação, com mil imagens que são projetadas a partir de sua mente. Dai a sua consonância com "O Aleph" que, curiosamente, o cineasta não leu, porque seus livros habituais não são os de Jorge Luis Borges, mas simplesmente historias em quadrinhos.
– Eu tinha esse roteiro guardado há muitos anos e não encontrava uma oportunidade pra realizar o filme. Muitos cineastas queriam me comprar o roteiro, mas não abri mão. Eu sabia que esse filme poderia significar um renascimento da minha carreira e as pessoas que viram o filme disseram exatamente isso: que é o melhor que já fiz desde os primeiros, principalmente os dois de horror, "À Meia Noite Levarei sua Alma" e "À Meia Noite Encarnarei no Teu Cadáver". Eu quis mostrar que existo também sem o Zé do caixão, mas o jornalista desse filme é uma projeção desse personagem. Eu disse na Espanha que uma coisa é Mojica Marins e outra é o Zé do Caixão. O sofrimento do jornalista é o meu sofrimento. Zé do Caixão busca o filho perfeito, que só pode ser feito com a mulher perfeita. O jornalista busca a manchete também perfeita.
O repórter que eu interpreto no filme tem um prazo de 24 horas para conseguir a manchete redentora de ano novo. Toda a ação do filme se passa em um dia. Um dia que vale por todos os dias porque, nessa véspera de ano, o repórter vê o mundo interior, vê a história da humanidade e vê todas as desumanidades possíveis. Essa é a realidade dele. Não fui eu que inventei o horror: o horror existe no cotidiano. Meu filme apenas reflete um pouco desse horror. O que eu inventei é o filme. Tive garra pra fazer esse filme, inventando sempre o que ainda não foi inventado, porque aquele que inventa o que já existe deixa de ser inventor.
– Sei que "Manchete de Jornal" é um filme que vai mexer com a classe dos jornalistas, mas acho que vai agradar aos bons jornalistas, aos que se dedicam de corpo e alma ao seu trabalho e que fazem de sua profissão não apenas um ganha pão. Não tive a intenção de fazer nenhuma critica aos maus jornalistas, inclusive porque estou sempre dizendo que a visão que eu tenho do jornalismo é particular, minha. Eu vejo o jornalismo da forma que está no filme. Se essa forma não corresponde à realidade, se não é bem assim, isso não me interessa. Eu acho que sou autêntico porque tenho coragem de filmar o que penso.
Mojica Marins não pode ter realmente nada contra o jornalismo brasileiro porque nenhum outro cineasta foi tão promovido como ele. Em seus estúdios da Mooca, tive oportunidade de ver o arquivo do cineasta e fiquei impressionado: todos os jornais brasileiros lá dedicaram páginas e mais paginas a ele. No estrangeiro, depois de Glauber Rocha, Mojica Marins é o cineasta mais comentado. Revistas francesas dedicaram várias páginas ao homem, que parece ser insaciável: Mojica Marins reclama que a maioria dos jornalistas que o entrevistam terminam a conversa no ponto em que deveria começar. Insatisfeito com essa situação, está escrevendo atualmente vários livros, tendo um deles já pronto ("O Universo de Mojica Marins", mesmo título do documentário que sobre ele fez Ivan Cardoso). Seu sistema de trabalho é este: nunca pára de filmar e, quando chega em casa à noite, liga um gravador e vai até altas horas da madrugada, expondo ao microfone a sua revolta constante contra o mundo, contra as injustiças que ele diz ver durante o dia. Como não pode fazer uso da máquina de escrever, devido ao comprimento de suas unhas (que variam entre 5 e 10 centímetros), deixa a tarefa de compilação a cargo de seu filho, um garotão que curte música de discoteca.
Em suma: "Manchete de Jornal – Mundo Mercado do Sexo" é o filme mais revelador desse universo fantástico de José Mojica Marins, não apenas um cineasta-inventor, mas basicamente um poeta visionário, um grande pensador, o criador da metafísica do povão. Tudo o que ele pensa sobre jornalismo, informação e comunicação está nesse filme, obra absolutamente deflagradora, visceral e generosa. Trata-se se de um filme único e legítimo porque não é imitação e, certamente, não terá imitadores.
(Folha de S. Paulo, 4 de junho de 1979)
Dzi Croquettes
Assisti ao trailer do filme que conta a história desse revolucionário grupo teatral, que subverteu
todas as ordens em plena ditadura militar e que estou ansioso que chegue nas telas. (Texto da enciclopédia Itaú Cultural)
Grupo carioca irreverente, alinhado à contracultura, à criação coletiva e ao teatro vivencial, que faz do homossexualismo uma bandeira de afirmação de direitos.
O conjunto cria, em 1972, o espetáculo Gente Computada Igual a Você, que se origina de um show de boate, posteriormente levado para São Paulo, na casa noturna TonTon. A realização transferida para o Teatro 13 de maio, faz enorme sucesso. Na equipe criadora do espetáculo constam os nomes do coreógrafo Lennie Dale, do autor Wagner Ribeiro de Souza, e dos bailarinos Cláudio Gaya, Cláudio Tovar, Ciro Barcelos, Reginaldo de Poli, Bayard Tonelli, Rogério de Poli, Paulo Bacellar, Benedictus Lacerda, Carlinhos Machado e Eloy Simões.
Gente Computada apresenta números cantados, dublados e dançados, entremeados por monólogos que
equacionam as experiências de vida dos integrantes. Tais textos de interligação, de autoria de Wagner Ribeiro, primam pela ironia, duplo sentido e tom farsesco. A montagem recicla práticas da antiga revista musical, do show de cabaré e da tradição norte-americana do entertainment. As coreografias de Tinindo Trincando, com música dos Novos Baianos, e Assim Falou Zaratustra, em versão dance e technopop, constituem momentos altos do espetáculo. Figurinos ousados, maquiagem pesada e o contraste dos corpos masculinos em trajes femininos imprimem ao espetáculo tons de grotesco, de deboche e espírito ferino. Um árduo trabalho de interpretação e de dança é empreendido pelo bailarino Lennie Dale, para transformar o grupo numa trupe artística, elogiada pela crítica.
Em Paris, os Dzi Croquettes conhecem a consagração internacional. Em 1973 e 1974, fazem longas temporadas no Le Palace e, entre outras atividades, participam do filme Le Chat et la Souris, de Claude Lelouch. Uma parte da equipe cria um novo espetáculo, Romance, de Cláudio Tovar e Wagner Mello, 1976, que não alcança a mesma projeção do anterior. Posteriormente um elenco feminino vem agregar-se ao núcleo fundador, mas essa alternativa não amplia as propostas iniciais e, pouco tempo depois, o grupo se dissolve.
Inspirado no conjunto norte-americano The Coquettes e no movimento gay atuante na off-Broadway, a equipe utiliza equacionar conteúdos brasileiros para falar de nossa realidade, desde a repressão sexual até a censura e a ditadura. O grupo está na origem de uma corrente que veio a se desenvolver algum tempo depois, vinculada ao travestismo, ao deboche, à exploração do virtuosismo dos membros do elenco, à caricatura, à farsa e à comédia de costumes. Influencia a criação do Grupo de Teatro Vivencial, do Recife, e diversos grupos gays da Bahia, nos anos 1980 e 1990. Em 2009, é lançado o documentário Dzi Croquettes dirigido por Tatiana Issa e Raphael Alvarez.
Inspirado no conjunto norte-americano The Coquettes e no movimento gay atuante na off-Broadway, a equipe utiliza equacionar conteúdos brasileiros para falar de nossa realidade, desde a repressão sexual até a censura e a ditadura. O grupo está na origem de uma corrente que veio a se desenvolver algum tempo depois, vinculada ao travestismo, ao deboche, à exploração do virtuosismo dos membros do elenco, à caricatura, à farsa e à comédia de costumes. Influencia a criação do Grupo de Teatro Vivencial, do Recife, e diversos grupos gays da Bahia, nos anos 1980 e 1990. Em 2009, é lançado o documentário Dzi Croquettes dirigido por Tatiana Issa e Raphael Alvarez.
+ Gladys
Veja que foto linda eu encontrei no blog do José Sette : Maria Gladys e a pequena Mariana de Moraes. Maria Gladys é uma das maiores atrizes de todos os tempos, protagonista de alguns dos momentos mais impressionantes, transcendentais e envolventes do cinema brasileiro moderno, em clássicos como "Os Fuzis" de Ruy Guerra e "Sem Essa Aranha" de Rogério Sganzerla.
Sou seu grande fã, fiquei apaixonado por Maria Gladys depois de vê-la gritando alucinada " Euuuu tooo com fooomeeee!!!!!!!!!".em "Sem Essa Aranha". Sem paciência nenhuma, Maria Gladys me concedeu no começo desse ano, uma entrevista super engraçada por telefone.
A pequena Mariana de Moraes, é neta de Vinicius de Moraes, e como podemos ver, desde muito pequena andava no meio de gente muito boa. Já grande, Mariana de Moraes participou de entre outros filmes, do remake de "Matou a família e foi ao cinema" de Neville de Almeida e de "Alma Corsária" de Carlos Reichenbach.
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