Bom-crioulo, de Adolfo Caminha: estratégias para uma narrativa homoerótica por Alfredo Fressia

"Sua amizade ao grumete nascera, de resto, como
nascem todas as grandes afeições, inesperadamente, sem
precedentes de espécie alguma, no momento fatal em
que seus olhos se fitaram pela primeira vez. Esse movimento
indefinível que acomete ao mesmo tempo duas
naturezas de sexo contrários, determinando o desejo
fisiológico da posse mútua, essa atração animal que faz
o homem escravo da mulher e que em todas a espécies
impulsiona o macho para a fêmea, sentiu-a Bom-Crioulo
irresistivelmente ao cruzar a vista pela primeira
vez com o grumetezinho. Nunca experimentara semelhante
cousa, nunca homem algum ou mulher produzira-
lhe tão esquisita impressão, desde que se conhecia!
Entretanto, o certo é que o pequeno, uma criança de
quinze anos, abalara toda a sua alma, dominando-a,
escravizando-a logo, naquele mesmo instante, como a
força magnética de um imã."


























Diante de um romance como Bom-Crioulo (1895), de Adolfo Caminha (Aracati, Ceará, 29 de maio de
1867-Rio de Janeiro, 1o. de janeiro de 1897), resulta quase inevitável a reflexão sobre o aleatório destino crítico de toda obra literária. Primeiro romance de tema totalmente homoerótico da literatura brasileira e inscrito na história literária sob o rótulo "naturalista", o texto tinha, por seu tema, antecedentes nacionais na mesma escola naturalista: os episódios de homossexualidade masculina em O Ateneu (1888), de Raúl Pompéia, e feminina, em O Cortiço (1890), de Aluísio Azevedo. No entanto, em Bom-Crioulo o homoerotismo masculino é a "única" paixão exposta, o motivo sobre o qual se estrutura todo o relato, e desde o qual se criam, de fato, todas as personagens. Como, além do mais, os protagonistas desse amor vestem os uniformes da Marinha nacional, a crítica de seu tempo, e do presente século até a década de 70, reagiu com perplexidade, e não tanto pelo recurso à mera detração, improvável diante de um texto que reúne demasiadas qualidades, mas sim pelo puro e simples silenciar-se.

É sabido que a patologização dos comportamentos homoeróticos alcançou sua maior intensidade no "século obscuro", o período que poderia ser inscrito entre as datas de 1869 (invenção da palavra "homossexualidade" e momento privilegiado do discurso repressivo) e 1968 ("liberação" dos costumes). Não resulta então casual que, desmontada uma boa parte dos dispositivos ideológicos desse "século", a crítica haja "redescoberto" este romance que, se nunca foi uma peça arqueológica da literatura latino-americana, agora se revela como um esplêndido documento de estratégias estéticas destinadas à abordagem de um tema em seu momento "tabu", e sem dúvida "perigoso". Como para compensar o silêncio crítico que cercou a obra, os últimos anos viram multiplicar-se os estudos específicos, as reedições e as traduções. (Em espanhol, existe pelo menos desde 1987 a edição de Ed. Posada, México, que manteve o mesmo título do original. Em inglês existe como Bom-Crioulo: The Black Man and the Cabin Boy, trad. de E. A. Lacey, San Francisco, Gay Sunshine Press. Com introdução de R. Howes.)

Chamando "Adolfo Caminha", o leitor encontra na Internet centenas de "sites", que incluem livrarias onde comprá-lo, teses universitárias, repertórios de literatura gay. Como, além do mais, Caminha tem sido autor freqüentemente obrigatório nos programas escolares dos últimos anos, suas edições não somente são facilmente encontradas como também vêm quase sempre anotadas e precedidas de pedagógicos prefácios (o que pode facilitar a leitura "internacional", alheia ao menos em parte ao locus exclusivamente brasileiro da obra e suas possíveis maneiras de acesso).

Por ocasião do centenário da morte do autor, multiplicaram-se também os perfis biográficos de Caminha e, sem dúvida, a tentação de descobrir o que possa haver de autobiográfico em sua obra. Adolfo Caminha foi efetivamente oficial da Marinha imperial, formado na escola naval do Rio de Janeiro, onde vivia desde 1883. Além do mais, em sua breve existência, Caminha protagonizou dois "escândalos" reveladores de seu carisma e também de sua incapacidade de conformar-se diante de qualquer status quo. Em 1884, como cadete naval, ousou discursar em certa cerimônia diante do Imperador Pedro II, expondo suas idéias republicanas e anti-escravagistas. O Imperador e a conservadora Marinha, de maioria monárquica, foram então indulgentes com ele. Não o seriam no outro episódio "escandaloso" de sua vida. Em 1888, já oficial, Camiha havia retornado a Fortaleza, a capital de seu estado natal, e ali se uniu à esposa de um oficial do exército, que lhe daria duas filhas. A proporção que adquiriu este episódio na provinciana Fortaleza da época está à altura da indignação que o futuro narrador manifestará diante da hipocrisia social. Sobrevivendo como funcionário público, Caminha retorna ao Rio em 1892, onde se dedicará ao jornalismo, à crítica literária (notas das quais resultará o livro Cartas literárias, de 1895) e à redação daqueles que seriam seus três romances (A Normalista, 1893; Bom-Crioulo, 1895; e Tentação, 1896), enquanto lutava contra a tuberculose que segaria sua vida aos 29 anos.

A audácia de publicar um livro homoerótico em 1895 custou a Caminha algo mais que o silêncio crítico sobre a obra. A audácia supôs também um trabalho de verdadeiro artífice do estilo, o que acabou garantindo a modernidade do texto. O narrador não tenta, em momento algum, tornar o tema opaco (um recurso freqüente na literatura propriamente gay, a do "século obscuro"). Nada mais explícito que o desejo desses homens, cujos atos de amor são narrados com sensualidade e com detalhes bem mais próprios da atual literatura postgay (sobre o deslinde postgay, ver meu artigo Acerca da literatura gay, publicado nesta revista eletrônica), a pouco econômica narrativa homoerótica dos últimos trinta anos. Caminha não se impõe os "limites" temáticos que a bienséance de 1895 podia exigir. O trâmite que negocia a própria existência desta narrativa na época radica no uso, meramente convencional, da retórica naturalista, de larga influência no Brasil, e na qual Caminha declara inscrever-se. Porém é paradoxal que, de fato, nenhum de seus três relatos logre o naturalismo que o autor predica. (Em A Normalista Caminha toca a mesma inverossimilhança). No caso de Bom-Crioulo, trata-se melhor de um recurso de sobrevivência. A saber, o autor, ao mesmo tempo em que afeta uma retórica naturalista, desautoriza, ao longo do relato, cada um dos princípios da escola de Médan. Emile Zola e seu grupo propunham privilegiar as "condições fisiológicas", a influência do meio social ("os meios", dizia Zola) como determinantes do ser humano. A psicologia ficava subordinada à "fisiologia", que inclui a hereditariedade e alguns componentes do que se denominará o darwinismo racial.

Com efeito, quando no primeiro dos 12 capítulos do relato, se apresenta o marinheiro Amaro (apodado Bom-Crioulo, um equívoco apelido), com seu corpo "colossal" e um "formidável sistema de músculos", o narrador menciona "a morbidez patológica de toda uma geração decadente e enervada". A essa altura o leitor imagina de boa fé que enfrentará um estudo "científico-naturalista". No entanto, a obra já não voltará ao tema da "decadência" racial e a menção terá sido uma mera concessão retórica ao "naturalismo" em voga para poder, em troca, apresentar um universo sado-masoquista. O romance se abre, de fato, com a tortura infligida diante de todos os tripulantes por um oficial e seu assistente a Bom-Crioulo e outros dos marinheiros (por delitos que incluem a masturbação). O personagem de Amaro é criado sobre a beleza e a dor (mas também sobre a obscura beleza da dor): "Bom-Crioulo tinha despido a camisa de algodão, e, nu da cintura pra cima, numa riquíssima exibição de músculos, os seios muito salientes, as espáduas negras reluzentes, um sulco profundo e liso de alto a baixo no dorso, nem sequer gemia, como se estivesse a receber o mais leve dos castigos".









































Por outro lado, a "fisiologia" e as condições sociais dos três personagens que fazem evoluir a ação, são
demasiado diversas: Bom-Crioulo é um escravo "fugido", refugiado na Marinha; Aleixo, o outro marinheiro, é um jovem e loiro adolescente do sul do Brasil, filho de pescadores catarinenses que se alista na Marinha, e no navio conhecerá a inesperada paixão que Bom-Crioulo lhe devota. Em terra, a portuguesa Carolina, é quase uma meretriz, gorda, hedonista e covarde. Não devia escapar a Caminha que os meios sociais e raciais concernidos eram demasiado heterogêneos para cumprir com as receitas do habitual romance à thèse naturalista.

Caminha construiu em Bom-Crioulo um romance de forte conteúdo erótico (não "pornográfico", segundo o equívoco deslinde que se costuma fazer, e ainda se no Brasil, que chegava ao século XX, já existisse literatura homoerótica "pornográfica") [1], e é evidente que tampouco lhe escapava a "gravidade" do tema, que o autor aborda com detalhes mais de connaisseur que de "cientista". O que fica de sua narração (e o que a torna "moderna") é a sensualidade da matéria narrada, e não os restos dessa estratégia "científica" que inclui, de vez em quando, e quando Caminha não se distrai, nomes como "uranismo", "anomalia", "desejo de macho torturado pela carnalidade grega". Um bom exemplo do trâmite narrativo de Caminha se encontra na sensual descrição da primeira relação de Bom-Crioulo e Aleixo, ainda no barco, quando "uma sensação de ventura infinita espalhava-se-lhe em todo o corpo"]. No momento da penetração, o relato é violentamente interrompido por este comentário estratégico que encerra o capítulo: "E consumou-se o delito contra a natureza".

Em Bom-Crioulo a própria sucessão dos segmentos narrativos é mais própria do romance erótico que do "naturalismo". Caminha, um homem de forte militância política, concentra o relato, no entanto, na paixão, como corresponde à estética do erotismo, e o "meio" torna-se demasiado descuidado para um romance que retoricamente se adscreve à escola naturalista. A paixão, na estética literária, é sempre "universal", e, com efeito, no fechado universo de Bom-Crioulo o leitor teria que estar muito atento para ler os signos políticos do "meio", a ponto de vacilar se deve situá-lo no final do Império (de fato ali se situa) ou já na República, depois de 1889. Esta vocação "universal" do relato, própria da estética erótica, também se manifesta na "universalidade" do homoerotismo apresentado: quase todos os personagens, de marinheiros a oficiais, praticam o homoerotismo, ou o praticaram, ou discursam sobre ele com uma benevolência inesperada [2].

Finalmente, a ação se concentra em apenas três personagens, em total desmedro do conjunto social, incluída aí a micro-sociedade do navio e dos embarcadouros do Rio. Mais ainda, com a relativa exceção de Bom-Crioulo (o único que trata de entender sua falta de interesse pelo sexo feminino, os anos em que, desorientado, se manteve virgem), os personagens são rápidos e de desembaraçada "psicologia", como se somente a paixão aclarasse tudo. Aleixo, como personagem, evolui apenas da ingenuidade ao oportunismo. Instalados na capital, na pensão da Carolina, Aleixo terá uma relação paródica, quase burlesca com ela. Bom-Crioulo, outra vez castigado pelos oficiais por participar de uma altercação ne rua, acaba no hospital da Marinha, criando um rápido vazio na vida de Aleixo, espaço que será preenchido por Carolina, um personagem criado com ironia: "Carola Bunda" (sic), uma "mulher-homem", excessiva em tamanho e cuja avidez sensual o jovem Aleixo satisfaz mal e por mero oportunismo.

Apesar do trâmite falsamente "naturalista" que o leitor desmonta hoje com facilidade, e apesar também da sensualidade e simpatia com que é criado o protagonista, Caminha tampouco se apresenta como especialmente "abandeirado" do homoerotismo (uma atitude sem dúvida militante, e mais própria da literatura postgay). Por mais que o erotismo do único personagem feminino toque o grotesco, a homossexualidade masculina de Bom-Crioulo não é per se de signo positivo. Sua prática não "melhora" (ainda que tampouco "piore") as personagens. Assim, quem comanda a última tortura física do protagonista, que o conduzirá ao hospital, será um oficial conhecido por sua afeição pelo amor "grego".

Além do mais, o romance tem um fim trágico: traído, e movido pela vingança, Bom-Crioulo mata Aleixo. É interessante que o desenlace arquitetado pelo autor não tenda ao murcho moralismo, à parábola moralizante da ideologia de sua época. O crime, mais do que pela evolução das "psicologias", se justifica por uma rede muito mais fina que o narrador cria durante todo o relato: as relações de poder que, essas sim, parecem preocupar ao político Caminha, e que em Bom-Crioulo, por sua estética erótica, desembocam em um universo sado-masoquista ao qual o narrador outorga toda sua parafernália estética (castigos, chicotes, instrumentos fálicos, isolamento, ambientes sombrios, fardas, suspensão do peso da "realidade", em particular social, mas também do tempo, passado ou futuro): "E não era somente questão de possuir o grumete, de gozá-lo como outrora (…) era questão de gozá-lo, maltratando-o, vendo-o sofrer, ouvindo-o gemer… Não, não era somente o gozo comum, a sensação ordinária (…) era o prazer brutal, doloroso, fora de todas as leis, de todas as normas…". Se Caminha foi um indignado com a sociedade de seu tempo (incluindo a mediocridade provinciana de Fortaleza, a frivolidade da capital e, mais ainda, a rebeldia diante das convenções sociais), Bom-Crioulo foi a obra estética privilegiada para a expressão de sua desconformidade. É o que torna este romance erótico um permanente jogo sincrônico de códigos, um objeto sempre a ponto de desorientar o leitor, capaz de desconcertar também a crítica, e seguir instigando-a um (longo) século depois da sua criação.


NOTAS
1 Ver Além do carnaval, a homossexualidade masculina no Brasil do século XX, de James N. Green. São Paulo, UNESP, 2000.
2 Às críticas negativas, Caminha respondeu no artigo Um livro condenado na revista literária A Nova Revista, vol. 2, Rio de Janeiro, fevereiro de 1886. Fala de "um verdadeiro escândalo ou ato inquisitorial da crítica, talvez o maior escândalo do ano passado". Utiliza ali a palavra homossexualismo, quando ataca a hipocrisia dos que elogiavam Flaubert, Zola, Maupassant, Eça de Queiroz, mas condenavam Bom-Crioulo. É outro bom exemplo de sua estratégia: "Qual é mais pernicioso: o Bom-Crioulo em que se estuda e condena o homossexualismo, ou essas páginas que andam pregando por aí, em tom filosófico, a dissolução da família, o concubinato, o amor livre e toda espécie de imoralidade social?" Recorde-se, de passo, que Caminha se mostra, neste artigo, atualizado em suas leituras (médicas, no caso) sobre o tema homossexual. Menciona o Dr. Ambroise Tardieu (Étude médico-légale sur les attentats aux moeurs, 1857), Dr. Albert Moll (Les perversions de l'instinct génital, 1893) e Richard von Krafft-Ebing.


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