"É que ninguém ignora o dissenso que se
abre em todo tempo e lugar sobre a
liberdade da inclinação sexual das pessoas,
por modo quase sempre temerário (o dissenso)
para a estabilidade da vida coletiva.
Em suma, estamos a lidar com um tipo de dissenso
judicial que reflete o fato histórico de que nada
incomoda mais as pessoas do que a preferência sexual
alheia, quando tal preferência já não corresponde
ao padrão social da heterossexualidade.
É a perene postura de reação conservadora
aos que, nos nsondáveis domínios do afeto,
soltam por inteiro as amarras desse navio
chamado coração."
"Ainda nesse ponto de partida da
análise meritória da questão, calha anotar
que o termo “homoafetividade”, aqui
utilizado para identificar o vínculo de
afeto e solidariedade entre os pares ou 8
parceiros do mesmo sexo, não constava dos
dicionários da língua portuguesa. O vocábulo
foi cunhado pela vez primeira na obra “União
Homossexual, o Preconceito e a Justiça”, da
autoria da desembargadora aposentada e
jurista Maria Berenice Dias, consoante a
seguinte passagem: “Há palavras que carregam
o estigma do preconceito. Assim, o afeto a
pessoa do mesmo sexo chamava-se
'homossexualismo'. Reconhecida a
inconveniência do sufixo 'ismo', que está
ligado a doença, passou-se a falar em
'homossexualidade', que sinaliza um
determinado jeito de ser. Tal mudança, no
entanto, não foi suficiente para pôr fim ao
repúdio social ao amor entre iguais”
(Homoafetividade: um novo substantivo)”.
"Trata-se, isto sim, de
um voluntário navegar por um rio sem margens
fixas e sem outra embocadura que não seja a
experimentação de um novo a dois que se
alonga tanto que se faz universal. E não
compreender isso talvez comprometa por modo
irremediável a própria capacidade de
interpretar os institutos jurídicos há pouco
invocados, pois − é Platão quem o diz -,
“quem não começa pelo amor nunca saberá o
que é filosofia”. É a categoria do afeto
como pré-condição do pensamento, o que levou
Max Scheler a também ajuizar que “O ser
humano, antes de um ser pensante ou
volitivo, é um ser amante”
"Mas é preciso lembrar que o
substantivo “preconceito” foi grafado pela
nossa Constituição com o sentido prosaico ou
dicionarizado que ele porta; ou seja,
preconceito é um conceito prévio. Uma
formulação conceitual antecipada ou
engendrada pela mente humana fechada em si
mesma e por isso carente de apoio na
realidade. Logo, juízo de valor não 13
autorizado pela realidade, mas imposto a
ela. E imposto a ela, realidade, a ferro e
fogo de u’a mente voluntarista, ou sectária,
ou supersticiosa, ou obscurantista, ou
industriada, quando não voluntarista,
sectária, supersticiosa, obscurantista e
industriada ao mesmo tempo. Espécie de trave
no olho da razão e até do sentimento, mas
coletivizada o bastante para se fazer de
traço cultural de toda uma gente ou
população geograficamente situada. O que a
torna ainda mais perigosa para a harmonia
social e a verdade objetiva das coisas.
Donde René Descartes emitir a célebre e
corajosa proposição de que “Não me
impressiona o argumento de autoridade, mas,
sim, a autoridade do argumento”, numa época
tão marcada pelo dogma da infalibilidade
papal e da fórmula absolutista de que “O rei
não pode errar” (The king can do no wrong”).
Reverência ao valor da verdade que também se
lê nestes conhecidos versos de Fernando
Pessoa, três séculos depois da proclamação
cartesiana: “O universo não é uma idéia
minha./A idéia que eu tenho do universo é
que é uma idéia minha”.
"Há mais o que dizer desse emblemático
inciso IV do art. 3º da Lei Fundamental
brasileira. É que, na sua categórica vedação
ao preconceito, ele nivela o sexo à origem
social e geográfica da pessoas, à idade, à
raça e à cor da pele de cada qual; isto é, o
sexo a se constituir num dado empírico que
nada tem a ver com o merecimento ou o
desmerecimento inato das pessoas, pois não
se é mais digno ou menos digno pelo fato de 14
se ter nascido mulher, ou homem. Ou
nordestino, ou sulista. Ou de pele negra, ou
mulata, ou morena, ou branca, ou
avermelhada. Cuida-se, isto sim, de algo já
alocado nas tramas do acaso ou das coisas
que só dependem da química da própria
Natureza, ao menos no presente estágio da
Ciência e da Tecnologia humanas."
"Um tipo de liberdade que
é, em si e por si, um autêntico bem de
personalidade. Um dado elementar da criatura
humana em sua intrínseca dignidade de
universo à parte. Algo já transposto ou
catapultado para a inviolável esfera da
autonomia de vontade do indivíduo, na medida
em que sentido e praticado como elemento da
compostura anímica e psicofísica (volta-se a
dizer) do ser humano em busca de sua
plenitude existencial. Que termina sendo uma
busca de si mesmo, na luminosa trilha do
“Torna-te quem és”, tão bem teoricamente
explorada por Friedrich Nietzsche. Uma busca
da irrepetível identidade individual que,
transposta para o plano da aventura humana
como um todo, levou Hegel a sentenciar que a
evolução do espírito do tempo se define como
um caminhar na direção do aperfeiçoamento de
si mesmo (cito de memória). Afinal, a
sexualidade, no seu notório transitar do
prazer puramente físico para os colmos
olímpicos da extasia amorosa, se põe como um
plus ou superávit de vida. Não enquanto um
minus ou déficit existencial. Corresponde a
um ganho, um bônus, um regalo da natureza, e
não a uma subtração, um ônus, um peso ou
estorvo, menos ainda a uma reprimenda dos
deuses em estado de fúria ou de alucinada
retaliação perante o gênero humano."
"No particular, o derramamento de bílis que
tanto prejudica a produção dos neurônios é
coisa dos homens; não dos deuses do Olimpo,
menos ainda da natureza. O que, por certo, 19
inspirou Jung (Carl Gustav) a enunciar que
“A homossexualidade, porém, é entendida não
como anomalia patológica, mas como
identidade psíquica e, portanto, como
equilíbrio específico que o sujeito encontra
no seu processo de individuação”. Como que
antecipando um dos conteúdos do preâmbulo da
nossa Constituição, precisamente aquele que
insere “a liberdade” e “a igualdade” na
lista dos “valores supremos de uma sociedade