Por: Tiago Bartolomeu Costa
Ninguém sabe como o enquadrar e ainda assim ele exige que o cinema não seja normalizado. Para ele o sexo não é um pretexto. É o que importa ao realizador de "L.A. Zombie: the movie that would not die", filme que tem hoje a primeira exibição no Queer
Inconformista, radical e inventivo. Assim é o cinema de Bruce LaBruce, pornógrafo esteta canadiano que com "L.A. Zombie: the movie that would not die" (19 e 23 Setembro) - censurado em vários países e protegido noutros - força um cruzamento entre a pornografia a instalação visual.
O seu cinema, fetichista e explicitamente homossexual, inscreve-se numa escola de demonstração da fisicalidade, sendo amoral e militante. Se há quem veja no seu trabalho apenas a provocação, a construção narrativa que tem vindo a propor ao longo de mais de vinte anos de trabalho, sendo consciente dessa provocação, usa-a para criticar a própria utilização da violência e da exposição. É um cinema que cruza o discurso filosófico militante e a pornografia hardcore. Filmes como "Hustler White", "Skin Gang" ou "Raspberry Reich" insistem num activismo radical, defendendo uma revolução homossexual que vá onde a revolução social não chegou. Mais do que o desejo é um olhar sobre a posse, e mais do que a militância integradora, é um protesto sectário. Profundamente individual, mas crente no poder da persuasão pela exaustão, é um cinema que balança entre a metáfora (como em "Otto, or up with the dead people", a primeira experiência com zombies) e a explicitação (como em "No Skin off my ass", a primeira vez que apresenta skinheads como heróis, elevando o sexo a arma de coacção) que repudia e intriga.
O seu cinema é metafórico e, ao mesmo tempo, pragmático. Entre uma coisa e outra, é sempre de imagens que falamos antes de chegarmos, se chegarmos, aos significados.
Esse é o problema da recepção do meu trabalho. As pessoas não conseguem ir além das imagens extremas, e não passam da superfície. Hoje é comum vermos filmes grotescos e violentos, com desmembramento de órgãos e exploração sexual, feitos por corporações económicas que, de forma cínica, fetichizam a morte. É verdade que o meu filme, que tem necrofilia e sexo e um protagonista que é um zombie que tem sexo com sem-abrigos restituindo-os à vida, se aproveita dessa linha, mas é uma alegoria. É obvio que é uma forma de falar de personagens marginais que nunca são representadas correctamente nos filmes.
Nos últimos anos a pornografia perdeu parte do seu poder de atracção porque a internet permitiu um acesso mais imediato ao sexo. Faz com este filme um regresso a um experimentalismo pré-internet?
É um regresso a um tempo onde a experimentação no cinema pornográfico, tanto hetero como gay, existia. Havia uma dimensão visual e uma liberdade, as situações narrativas relativamente sofisticadas eram articuladas da mesma forma
que o cinema "mainstream" o fazia. É mais uma fusão do gay avant-guarde com a pornografia, algo muito comum nos anos 60 e 70. Parece estranho hoje porque a narrativa na pornografia se tornou um vestígio de algo que já existiu mas agora parece obsoleto. Até mesmo como pretexto para o sexo.
Há muita pornografia moderna feita para o mercado do vídeo que é um reflexo do porno que costumava existir. É mais cinematográfica e tenta libertar-se desses modelos exauridos e apresentar algo novo, misturando factos e ficção de forma quase subversiva, e com uma atitude de guerrilha, em oposição à pornografia corporativa.
O uso de uma figura como François Sagat é um piscar de olho a essa normalização da indústria porno?
Ele traz consigo uma certa expectativa, há homens que o têm como modelo, mas ele é quase anti-porno. A cultura porno está a ficar mais conservadora aceitando a normalização da homossexualidade como se fosse um movimento "mainstream". De certa forma só uma estrela como Sagat podia suportar essa expectativa porque ele representa um modelo tão extremo, sexual e graficamente, que pode ser visto como uma resposta a isso. Porque ele liga muitos pontos em muitos estilos criativos diferentes e nos quais estou interessado, como a moda, a fotografia, os filmes de arte e a pornografia. Transformei-o no "ultimate art object", como se fosse uma escultura viva. Todos os dias foi pintado com cores diferentes, explorando uma dimensão tanto pornográfica como surrealista. Há cenas, como a do acidente ou quando ele arrasta o primeiro corpo e o penetra no coração dentro de um enorme caixote de cartão, que foram pensadas como instalações.
A militância que caracteriza os seus filmes encontra, também ela, aqui um apaziguamento: abandona um conjunto de fetiches que poderiam dirigir-se a um grupo mais restrito de espectadores e aborda uma problemática social que é a dos sem-abrigo.
Sim, mas também não é algo que as pessoas estejam interessadas em discutir. Os sem-abrigo são entendidos pela sociedade americana como uma subsecção dispensável. Pareceu-me que serem vistos como zombies era uma bela metáfora para falar deles. Tive esta ideia de que a personagem [de Sagat] poderia ser um sem-abrigo, mas quando cheguei a Los Angeles e vi a extensão do fenómeno dos sem abrigo transformei-o em alguém que fode com eles para os devolver à vida.
De qualquer forma não sei a quem se dirige este filme. Acho que o público para estes filmes desapareceu. É um filme anti-filme. É um anti-porno.
Isso faz com que o objecto se sustente e defenda como?
Não sei. Fico chocado com o facto de ter tanta atenção. Os festivais de cinema gay estão cheios de maus filmes gay que não são interessantes. Eu acho que a atenção que está a ter se deve ao facto de ser um filme experimental, no sentido puro do termo. É um conceito desenvolvido sem compromissos. Mas não estou particularmente interessado no circuito dos festivais queer.
Porque replicam modelos normativos de programação?
Os festivais gay são uma espécie de "catering" demográfico de uma assimilação "mainstream" onde as pessoas querem ver a homossexualidade normalizada. De certa maneira é uma plataforma ideológica onde é difícil fazer arte porque apresentam um estilo de vida mais do que qualquer outra coisa. Eu sei que há muitos trabalhos nos festivais gay que são experimentais, e muitas curtas que são complexas e interessantes, mas como fenómeno de género acho que o movimento gay na Europa ocidental, Canadá e EUA está morto. A sua agenda é a assimilação e, uma vez isso feito, torna-se supérfluo. E isso não deixa espaço para a consciência gay.
Nem para a militância?
Houve um tempo em que existiam pessoas que exultavam as diferenças que caracterizam a comunidade gay. Faziam um trabalho de bastidores que era a ponta de lança de uma atitude. Era por isso que se chamavam avant-garde. Eles lideravam, não seguiam. A assimilação é uma continuação, não é uma evolução. Torna-se normalizável, domesticado, enquanto a avant-guarde inventava, liderava, desafiava. É por isso que a pornografia me interessa, porque é o ultimo acto de radicalismo homossexual. É a ultima fronteira contra a assimilação porque ninguém a quer aceitar e enfrentar. Há algo de muito burguês em não querer ver homens a levar no rabo e a chuparem as pilas uns dos outros.
Ainda acredita que a revolução, para existir, tem que ser sexual, e a revolução sexual para acontecer tem que ser homossexual?
Sim, absolutamente. Mas esse é o problema do liberalismo que se sustentava em imperativos políticos que defendiam a igualdade e a liberdade e isso já não existe. O liberalismo foi corrompido pelo capitalismo e já não há libertação no liberalismo.